terça-feira, maio 30, 2006

A Última Frase


"A vida é demasiado fácil para que se continue a escrever sobre ela."

Verdades Quase Verdadeiras, José Luís Peixoto


segunda-feira, maio 29, 2006

Materna Doçura


O professor vê um miúdo à beira rio, sozinho, sentado com as botas a tocar na água calma do rio.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Sacha.
- Sacha??? Não é um nome vulgar.
- Manias da minha mãe. É que ela gosta de nomes estrangeiros.


"Até o meu nome é desconhecido. Para ela sou um estrangeiro. E para o filho da puta do Guimarães, sou um vadio. Mas prefiro ser vadio do que filho da puta."

O miúdo tem mesmo cara de miúdo, olhos de miúdo, mãos de miúdo. O miúdo olha para cima, para o saber do professor.

"Tens respostas para mim? Porquê é que eu sinto o que sinto? Não compreendo! Responde!"
O professor olha para baixo, para a tristeza do miúdo. Senta-se ao lado dele e o miúdo levanta-se.
- Queres uma maçã?
- Está envenenada?
- Se estivesse envenenada, nunca te dizia que estava envenenada.

E o miúdo senta-se ao lado dele. Mas só depois de ver uma trinca bem dada pelos dentes do professor.


"Materna Doçura", Teatro Virgínia de Torres Novas


sexta-feira, maio 12, 2006

Em Transe



Shiny, shiny, shiny boots of leather
Whiplash girlchild in the dark
Clubs and bells, your servant, don’t forsake him
Strike, dear mistress, and cure his heart
Downy sins of streetlight fancies
Chase the costumes she shall wear
Ermine furs adorn the imperious
Severin, severin awaits you there
I am tired, I am weary
I could sleep for a thousand years
A thousand dreams that would awake me
Different colors made of tears
Kiss the boot of shiny, shiny leather
Shiny leather in the dark
Tongue of thongs, the belt that does await you
Strike, dear mistress, and cure his heart
Severin, severin, speak so slightly
Severin, down on your bended knee
Taste the whip, in love not given lightly
Taste the whip, now plead for me
I am tired, I am weary
I could sleep for a thousand years
A thousand dreams that would awake me
Different colors made of tears
Shiny, shiny, shiny boots of leather
Whiplash girlchild in the dark
Severin, your servant comes in bells, please don’t forsake him
Strike, dear mistress, and cure his heart

"Venus in Furs", The Velvet Underground & Nico

quinta-feira, maio 11, 2006

Dicionários



Uma das coisas que já me habituei é escrever mentalmente o sonho, já que não posso estar sempre a acordar para escrever o que está a acontecer. Além de ser perigoso para os meus olhos, não é honesto estar a interromper um sonho. Da mesma forma que não interrompemos o que sentimos em terra firme, também não devemos interromper o que sonhamos, seja em terra firme ou terra de vento.

Ao mesmo tempo que estou a sonhar com um poema com a história de um umbigo, encontrei este dicionário do início do século XX. Abro uma página ao acaso.

"Insensibilidade: O vosso coração inflamma-se com demasiada promptidão. Tende mais socego."

Não resisti em consultar o significado da palavra Coração.


quarta-feira, maio 10, 2006

Passadeira


Quando olhei para cima, vi-a. Era ela. É ela. Não olhei para os lados, para ver se vinham carros. Olhei para ela. Para os olhos dela. Os meus pés pisavam os intervalos pretos, sujos. Os pés dela pisavam as linhas brancas, delicadas, silenciosas. Não queria pisar o mesmo que ela pisava. Senti que era uma tortura. Para mim e para ela. Mas não deixava de olhar para ela, para os olhos dela. Cruzámo-nos, em compassos diferentes em destinos impossíveis. Ela queria fugir. Eu queria falar. Ela disse olá, sem forças para esconder o olhar. Eu disse olá, como uma faca que se espeta nas costas.
Eu já estava do outro lado da passadeira. Não sei se ela chegou ao outro lado, não olhei para trás.


terça-feira, maio 09, 2006

O Segredo Raptado


Voltei para trás. Virei as costas garridas verde alface para o sol e subi a rua de pedra até lá acima, bem acima no monte das folhas caídas.
Encontrei duas folhas separadas por uma cortina cor de mar. Agachei-me de cócoras, arregacei as calças até aos joelhos e deixei-me pousar sobre a cortina. A cortina era macia, fazendo-me lembrar com saudade dos meus dias de Verão na areia da Praia Verde.
Senti qualquer coisa de estranho quando olhei para as duas folhas. Tinha a sensação que quando olhava para a folha encarnada do meu olho esquerdo, a folha do meu olho direito enrugava-se e entrelaçava a minha perna. Mas quando punha os olhos na perna, a folha feijão do meu olho direito estava intacta, quieta no seu canto ao lado da cortina cor de mar.
E isto não ficava por aqui, pois quando olhava para a folha feijão do meu olho direito, sentia a folha encarnada a abraçar-me o pescoço, que já transpirava.
Percebi que estava com um problema de lógica com os meus olhos: não consigo trocar os meus olhos a tempo de ver ao mesmo tempo o comportamento de vida das folhas. E não queria pensar na tentação de agarrar uma das folhas, guardá-la e olhar para a outra. Assim era batota e podia acontecer qualquer coisa má e com consequências graves. E não queria enganar as folhas.
E se elas ali estivessem, separadas por uma cortina, por algum sentimento escondido, por alguma alma perturbada?
Estava a ficar escuro e as folhas mal se viam. Dei um olhar pisca de olho às duas folhas, levantei-me, arregacei as calças até ao calcanhar, estendi a cortina cor de mar e fui embora.
Hoje vou sonhar com elas, com as folhas. Talvez consiga olhar para elas e contar o meu segredo.


sexta-feira, maio 05, 2006

Vozes da Orquestra

Fecha as janelas.

"Do verde, do azul amarelo cor de prata, das cinco e meia da tarde."

Fecha as janelas, fecha as janelas.

"Vou ter aí, vou ter contigo. Não chames a espera, vou ter aí, vou ter contigo!"

Fecha as janelas.

"Queres ver o quê? Teimosia de aventura, tresloucada. Está escuro, o comboio anda mas a luz não dorme. Está acordada sem mim."

Fecha as janelas.

"Tenho saudades. Das pessoas, das ruas de passos pintados. É giro, é giro. É como a colecção de postais da mãe."

Fecha as janelas, fecha as janelas.

"Vais ver, vai nascer amanhã! É uma vida dentro de ti!"

quarta-feira, maio 03, 2006

A Casa do Vento que Soa

Eugénia. Cara de rugas, velhas, cansadas, pesadas. Deambula pela casa das quatro janelas, com os dedos finos a fazerem festas no andar das pernas. Passo com passo-a-passo, sabe que esta é a sua hora. A hora de ouvir o vento a levar-lhe a alma, a hora de fechar as janelas que restam da sua vida.
Fecha a janela do sol sem olhar para a luz que lhe queimou o coração, fraco, moribundo.
Fecha a janela do mar, enxugando as lágrimas mortiças de mágoa sofrida.
Fecha a janela das flores, da dança do primeiro amor, do primeiro cheiro.
Eugénia sorri. Nua, no parapeito da janela do vento. Encosta o ouvido na janela fechada, devagar, muito devagar.
Ouve o vento a chamar, a gritar por ela.
Eugénia sorri. Nua, no parapeito da janela do vento. Brinca com os dedos na janela fechada, a lembrar-se da criança que já foi, trazida pelo vento.
Eugénia sorri. Abre a janela. Abraça-se. Abraça. O vento. Abraça-se. Abraça.

terça-feira, maio 02, 2006

Existir


Abrir os olhos
na escuridão
é sentir o arder
da chama que consome o existir.


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