quarta-feira, maio 25, 2005
Vem ter comigo
Vem ter comigo,
doce imagem nascida de sol raiado de luz
Vem ter comigo,
terno olhar manchado de cor sedutora
Vem ter comigo,
voz sonhada que aquece em abraço sentido
Vem ter comigo,
sorriso declarado de lábios beijados
Vem ter comigo,
saudade massajada de angústia adormecida.
quinta-feira, maio 19, 2005
Orvalho
Não tenhas receio, orvalho feiticeiro,
Larga a tua gota molhada
Nos meus lábios secos de mel.
quarta-feira, maio 18, 2005
Amor mudo
Ardendo de amor, as cigarras
cantam: mais belos porém são
os pirilampos, cujo mudo amor
lhes queima o corpo!
Herberto Helder – Poesia Toda
terça-feira, maio 17, 2005
Amor
A jovem deusa passa
Com céus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.
Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.
É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.
E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.
Miguel Torga
Fardo pesado
Zivot Je Cudo
O Corpo e a Primavera
Ouço o corpo
da Primavera.
Na brisa
segura macias flores.
Dir-se-ia o delicioso rubor
dos seios.
Não sei se surgindo
da vergonha
de alguns botões ainda
por abrir.
Terno enredo
o de escutá-lo no sobressalto e despontar
do sexo: sentado
conserva os joelhos apertados
contra o queixo,
furtando-o
a invisíveis e furiosas
abelhas.
Talvez por medo
de que o mel desabe
e o tempo tenha de acolher-se,
abrasado de cio,
na delícia e destreza
de uma ingenuidade em absoluto
efémera.
De que as rosas
breve
percam o engano e o frescor
da voz.
Deixemo-lo, pois, entregue
ao claro som e asseio
do seu respirar.
Eduarda Chiote
segunda-feira, maio 16, 2005
Sonho
Fumo, sonho
Recostado na poltrona.
Dói-me viver com uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.
Abrigo no peito,
Como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo que sente tudo o que eu sonho
Como se fosse real.
Álvaro de Campos
sexta-feira, maio 13, 2005
Eldorado
Gaily bedight,
A gallant knight,
In sunshine and in shadow,
Had journeyed long,
Singing a song,
In search of Eldorado.
But he grew old -
This knight so bold -
And o'er his heart a shadow
Fell as he found
No spot of ground
That looked like Eldorado.
And, as his strength
Failed him at length,
He met a pilgrim shadow -
"Shadow," said he,
"Where can it be -
This land of Eldorado?"
"Over the mountains
Of the Moon,
Down the Valley of the Shadow,
Ride, boldly ride,"
The shade replied -
"If you seek for Eldorado!"
Edgar Allan Poe
quinta-feira, maio 12, 2005
Alba
Orvalho da manhã, pranto da noite,
Luz que só tinha sombra e clareou.
Como um poema que se derramou
Sobre o corpo da vida
Mal acordada,
Assim és tu, pura emoção vertida,
Voz do silêncio, solidão molhada.
Miguel Torga
terça-feira, maio 10, 2005
Diálogos Pensantes
“20 anos e 3 dias de proibição de proferir qualquer diálogo ou monólogo, com a obrigação de comparência todos os domingos do mês de Março no Posto de Censura Falatória, em anos bissextos.”
Juvenal Prazeres saiu cabisbaixo, a matutar nas suas últimas palavras.
“Estou arrependido”, disse Juvenal, para agrado dos juízes da Suprema Instância da Censura Falatória.
- Mas arrependido de quê? Disse o que eu sentia. O que sofria. Das minhas ânsias tenebrosas por não te poder dizer, até aos pesadelos sonhados em labirintos sem fim, à procura da tua essência.
- Pagaste um preço muito alto pela tua rebeldia leviana. Ficaste preso em ti próprio. Achas que valeu a pena?
- Valer a pena? Como é que ousas pensar bárbara pergunta?
Ouve-me com atenção, a minha prisão foi assinada no tempo incerto de outrora. Só porque nasceste prematura consciência, achas-te com o direito de julgar todos os meus sentidos ?! Eu sou uma incógnita presente no universo de equações, para a qual nunca encontrarás solução. E esta é a minha liberdade.
segunda-feira, maio 09, 2005
Órbita de Girassol
O girassol roda as pétalas cobrindo a tua voz. Uma voz recheada de palavras lânguidas que matam a ausência de semente germinada.
Palavras de amor declarado. Palavras pintadas pelo olhar embriagado da tua sede de viver.
O Primeiro
Fui o primeiro. Primeiro filho, primeiro sobrinho, primeiro neto. O primeiro de todos. O primeiro a nascer do ventre da minha mãe. O primeiro a ser elevado às alturas pelos braços fortes do meu pai. O primeiro neto da avó Guilhermina e do avô Zé.
Lembro-me da minha avó a chamar-me, quase sem voz:
- Carlitos! Carlitos!
O tom de voz dela soava grave, cansado, nem se percebia a primeira sílaba, mas quando chegava à segunda, o som grave desaparecia para se tornar agudo, estridente, entrando pelos corredores dos meus ouvidos a uma velocidade incrível. E eu lá respondia, com a maior calma do mundo:
- Já vou, vó!
Lembro-me do menino que estava na parede da sala, com uma lágrima no olho, quase a chorar. Uma cara enorme, bochechuda, que estava sempre a olhar para mim. Perseguia-me, a censurar tudo o que eu fazia.
Lembro-me da mota do meu pai. Uma mota preta, com o depósito de cor cromada e brilhante, com pedras preciosas alaranjadas que formavam uma concha. Não havia nenhuma igual. E lá ia eu, sentado no depósito, com o vento gelado a bater-me na cara, a descer a Calçada do Monte até à rua António Vicente Júnior.
Mas a lembrança que perdura na minha memória era o pânico de ficar sozinho, o medo aterrador de não me virem buscar ao Jardim de Infância do Andaluz. Não percebia porque é que a minha mãe que me fazia rir, que me adormecia os sentidos ao som de John Denver, deixava-me ao abandono náufrago numa sala branca e redonda, repleta de portas e janelas, cujo centro era alimentado por um pilar redondo, perfeito para as minhas pequenas mãos que tocavam, que abraçavam a superfície mais lisa que eu conhecia. Dava voltas e voltas, abraçado ao pilar frio, sempre com a ínfima esperança que a grande porta ao fundo da sala se abrisse. Abria muitas vezes, mas não era ela. Não era a minha mãe. E chorava. Um choro de raiva e birrento. Um choro mimado. Um choro que ecoava na grande sala mas não chegava ao alcance de ninguém. Ninguém ouvia. Ou ninguém queria ouvir. Será que a minha mãe não me ouve? Ninguém ligava ao meu tormento.
”Porque é que o Carlos Eduardo está a chorar?”, diziam as guardas. “É sempre assim todos os dias. Não falha nenhum. Já nem ligo. Se vais ter com ele para o acalmar ainda é pior. Deixa-o estar com a birra dele. É mimado, é o que ele é.”
E no fim de muitas lágrimas e voltas ao meu amigo pilar, porque ele é que era o verdadeiro amigo, pois aguentava a tormenta sem dar sugestão, a porta abria-se de luz e olhava para ti. Sabia que eras tu, mãe.
Sem despedida, corria com passo alargado e respirar abafado para os teus braços macios que esmagava com toda a força que tinha, como se fosse a primeira vez que o teu olhar me beijasse.
quinta-feira, maio 05, 2005
Escadas Rolantes
As pernas de Agostinho Busca já estavam gastas, como as solas dos seus sapatos pretos ao pisarem os degraus de pedra da eterna escadaria da Calçada do Monte. Enquanto escalava os degraus, lembrava as corridas que fazia com o Diogo Fresco e o Zé Palma. Os três subiam a escadaria a ziguezaguear toda a gente e era sempre o Agostinho que chegava primeiro. Pisava o último degrau, pegava na fisga, voltava-se para trás e tentava acertar o Diogo e o Zé. Era este o prémio da corrida.
Agostinho já estava velho de idade. Sentia-se cansado de ver as mesmas gentes a passarem por ele, sempre com toda a pressa do mundo para chegar ao destino. Quando chegava ao fim da calçada, sentava-se no banco da esquina e enrolava um cigarro. E fumava.
Cada trago de fumo que inalava, as pálpebras magriças despertavam os olhos lunares à procura de vista. A procura acabava por ser fugaz, pois a vista revelava rostos inertes.
No dia seguinte, quando se depara com a Calçada, apercebe-se da inauguração de uma escada paralela à que sempre existiu. Uma escada rolante. Degraus de ferro nasciam da terra e transportavam uma cordilheira de gente impaciente pela chegada. Agostinho Busca vibrou. Avançou amedrontado pelas pernas medrosas, de olhos fixos nos degraus em movimento constante. Mal teve tempo para cansar, pois já tinha chegado lá acima. Quando ia enrolar o seu cigarro, o banco estava ocupado. Um rosto moribundo, velho e cansado olhava sem fim. Agostinho estava incrédulo. Algo estava diferente. Todos quanto via em seu redor estavam velhos. Velhos de vida.
Desceu pelos degraus de ferro sem olhar para trás, pois não queria tornar a ver aquela visão aterradora. Quando olha para a escadaria de pedra, repara que está sozinha, sem passos. Larga a escada rolante apinhada de gente e começa a subir o saudoso calvário de pedra, ansioso pelo que estava a prever no seu imaginário. E chegou. E ri-se. Gargalhadas compassadas cada vez mais intensas chamam o olhar dos putos. E Agostinho Busca apalpa o bolso das calças à procura da sua fisga, com o Diogo e o Zé à espreita atrás da esquina.
quarta-feira, maio 04, 2005
Acordar
Acordo com sobressalto do limbo profundo. Atraído pelo teu sorriso hamletiano.
segunda-feira, maio 02, 2005
Tempo Fiel
Acordava sempre todos os dias à mesma hora. Ao fim de 68 anos de vida, o despertador já respeitava o dono.
Adiantava alguns segundos com o propósito de não estragar a pontualidade automática do seu organismo.
Dava gozo ao Vicente acordar antes do toque baforento do relógio despertador. Mal sabia o Vicente o quanto o relógio gostava dele. Como era um fiel súbdito e discreto obediente. O que sentia quando via o sorriso do Vicente ao acordar, um sorriso vitorioso, como se tivesse ganho a batalha mais maléfica contra o Diabo.
Nesse dia, o Vicente não acordou. A triste raiva do relógio passou pelo tempo em silêncio.
Nunca mais teve coragem para tocar o despertar.