segunda-feira, maio 09, 2005

O Primeiro

Fui o primeiro. Primeiro filho, primeiro sobrinho, primeiro neto. O primeiro de todos. O   primeiro a nascer do ventre da minha mãe. O primeiro a ser elevado às alturas pelos braços fortes do meu pai. O primeiro neto da avó Guilhermina e do avô Zé.

Lembro-me da minha avó a chamar-me, quase sem voz:

-          Carlitos! Carlitos!

O tom de voz dela soava grave, cansado, nem se percebia a primeira sílaba, mas quando chegava à segunda, o som grave desaparecia para se tornar agudo, estridente, entrando pelos corredores dos meus ouvidos a uma velocidade incrível. E eu lá respondia, com a maior calma do mundo:

-          Já vou, vó!

Lembro-me do menino que estava na parede da sala, com uma lágrima no olho, quase a chorar. Uma cara enorme, bochechuda, que estava sempre a olhar para mim. Perseguia-me, a censurar tudo o que eu fazia.

Lembro-me da mota do meu pai. Uma mota preta, com o depósito de cor cromada e brilhante, com pedras preciosas alaranjadas que formavam uma concha. Não havia nenhuma igual. E lá ia eu, sentado no depósito, com o vento gelado a bater-me na cara, a descer a Calçada do Monte até à rua António Vicente Júnior.

 

Mas a lembrança que perdura na minha memória era o pânico de ficar sozinho, o medo aterrador de não me virem buscar ao Jardim de Infância do Andaluz. Não percebia porque é que a minha mãe que me fazia rir, que me adormecia os sentidos ao som de John Denver, deixava-me ao abandono náufrago numa sala branca e redonda, repleta de portas e janelas, cujo centro era alimentado por um pilar redondo, perfeito para as minhas pequenas mãos que tocavam, que abraçavam a superfície mais lisa que eu conhecia. Dava voltas e voltas, abraçado ao pilar frio, sempre com a ínfima esperança que a grande porta ao fundo da sala se abrisse. Abria muitas vezes, mas não era ela. Não era a minha mãe. E chorava. Um choro de raiva e birrento. Um choro mimado. Um choro que ecoava na grande sala mas não chegava ao alcance de ninguém. Ninguém ouvia. Ou ninguém queria ouvir. Será que a minha mãe não me ouve? Ninguém ligava ao meu tormento.

          ”Porque é que o Carlos Eduardo está a chorar?”, diziam as guardas. “É sempre assim todos os dias. Não falha nenhum. Já nem ligo. Se vais ter com ele para o acalmar ainda é pior. Deixa-o estar com a birra dele. É mimado, é o que ele é.”

E no fim de muitas lágrimas e voltas ao meu amigo pilar, porque ele é que era o verdadeiro amigo, pois aguentava a tormenta sem dar sugestão, a porta abria-se de luz e  olhava para ti. Sabia que eras tu, mãe.

Sem despedida, corria com passo alargado e respirar abafado para os teus braços macios que esmagava com toda a força que tinha, como se fosse a primeira vez que o teu olhar me beijasse.


Comments:
Primeiro...de um ciclo; cabe-nos fazer melhor. Seremos capazes? Vamos tentar. Eu vou tentar. Na ilha das flores teremos oportunidade de construir um Mundo melhor.
 
Pois é foste o primeiro de trÊs endiabrados filhos.
Mas eu para além da sensação de ser filha, neta e sobrinha, recebi os abraços de vocês, dos meus irmãos..
Tu foste o primeiro filho e neto e eu fui a primeira filha e neta, uma menina..
E era sempre a primeira que "levava tareia" dos meus queridos manos.Pois é esse era o meu medo..vivia perseguida por dois grandes seres "maquiavélicos" que só sabiam eram me xatear e assustar.. e eu não percebia porquê, porquê eu?!...
E a perseguição só acabava com um grito de apelo estridente, acompanho de um choro convulsivo:"Mãe..Mãe??O Carlitos e o Paulo querem me bater!!!"
E lá ia eu, ao encontro daqueles braços carinhosos e protectores,onde eu me sentia a salvo daqueles "monstrinhos"..e enxugava-me os olhos até eu esboçar um sorriso..a minha querida mãe..
Mas essa "malvadez" dos meus manos transformava-se em miminhos..ao mesmo tempo que me davam "estalinhas", enchiam-me de beijos..
E não me largavam,ninguém me podia tocar para além deles.**
 
Muito bonito menino carlitos.
Fiquei cheia de vontade de me enrolar nos braços da minha mãe. É este o verdadeiro AMOR!
 
Pois eu ADOREI..mais que isso amei!
Não vivi contigo essa tua fase de criança, no entanto partilhei contigo muitos bons momentos.
Fico à espera de mais...
surpreendes-me a cada dia que passa..
 
Fiquei com o olhar que beija gravado na memória! Como os olhos são a porta da alma dedico-te "os olhos de isa".
 
Está muito bonito. É a realidade, os pais tentam resolver o problema de se ausentarem e arrajam outro. Não vale a pena fugir dos problemas...
 
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