quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Tricotar uma Conversa de Xaile


Estou sentado a ouvir um poliglota a tricotar umas palavras com a senhora do banco da frente. O poliglota, dizia ele, que falava muitas línguas e que tinha viajado pelo mundo inteiro (como se isso fosse possível, conhecer o mundo inteiro...) mas que se tinha esquecido de tudo, de todas as línguas. Pelos vistos, a língua portuguesa não esqueceu. Só por acaso.

- Por acaso você não era a professora de Fisico-Química?
- Nunca fui professora...
- Ai não?

Deve ser uma sensação horrível. Uma pessoa que quer lembrar o enamoramento de outros tempos, a falar da vida noutros lugares que passou, a tricotar conversa com uma mulher de xaile riscado com triângulos, de sapatos pretos e meias pretas para esconder as varizes. Deve ser uma sensação horrível ter uma resposta de traição da memória. O poliglota grisalho ficou com uma expressão aflita, sem saber o que fazer, sem saber o que falar para continuar a tricotar. E nem conseguia ter um gaguejo de hesitação.

- Mas eu gostava de Fisico-Química... Sabe, o meu pai era funcionário público e trabalhou em Lisboa durante muitos anos. E hoje vim visitar o meu neto. Ele está bem de saúde, graças a Deus. O meu netinho está um rapagão feito!

O poliglota ficou aliviado e esboça um sorriso diplomático.

- O meu pai era ferroviário e eu nunca tive poiso na minha infância e consequente adolescência. Vivi no Entroncamento, Coimbra, Alfarelos...
- Alfarelos?! Ai desculpe, mas o nome dessa terra é tão engraçado...Alfarelos...

Enquanto a mulher de xaile ria de mão na boca, o poliglota acompanha com um sorriso envergonhado, tímido como um puto medroso ao ver um sorriso da menina mais bonita da classe.

- Alfarelos é antes de Coimbra. É a ligação entre a linha do Norte e a linha da Foz do Mondego. Agora é um apeadeiro esquecido. Destas terras, destes lugares que eu vivi, gosto mesmo é do Entroncamento.
- Ai sim? O Entroncamento é a terra dos fenómenos, não é, onde nascem aquelas batatas e couves gigantes?

O poliglota suspira para não ouvir o riso da mulher de xaile.

- Sim, sim. Mas não é por ser um fenómeno que eu gosto do Entroncamento. Já viu que está perto de todas as cidades? Está a uma hora de Lisboa, a uma hora de Coimbra, a duas horas do Porto...
- Desculpe interrompê-lo, mas eu não disse que você era um fenómeno... não quis ofendê-lo. Por falar nisso, ainda está a quatro horas de Portalegre? A viagem é tão bonita. O comboio a acompanhar o Tejo até à sua nascente...

O poliglota começa a ficar vermelho. De uma cor estranha. Um fenómeno nunca visto.

- Desculpe, mas essa viagem é uma grande seca. Se quer que lhe diga, gosto mais de ver o Tejo até à foz, até Lisboa. É pena...
- É pena? É pena o quê?
- Lisboa.
- Tem pena de Lisboa? Ai homem, despache-se a falar, não percebo nada...
- Lisboa é violento...
- Mas eu aguento. Até parece que não gosta do meu xaile. Não é bonito?

Os olhos do poliglota finalmente falaram com os olhos da mulher de xaile.

- É bonito. Por acaso, é bonito. Foi você que fez?
- Por acaso, não. Mas gostava que tivesse sido você.




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