quinta-feira, janeiro 19, 2006

A Teoria do Licor


- Ó mê amigo, com o alicate abre de certeza!

Ouvir a pronúncia da beira, das consoantes carregadas, é uma dádiva invulgar de lufada de ar fresco. Uma lufada de ar fresco em paisagem de tasca. A bem dizer, paisagem tasqueira.
- Mas eu tenho aqui mais coisas! Não é só o dinheiro para pagar a conta!
O baixinho de óculos de ombros azuis escuros chegou. Estava à escuta melindrosa. Estava a topar o colega a ajudar a pobre e indefesa senhora da mala dos caracóis. Quer dizer, a senhora dos caracóis com a mala de três fechos.
O baixinho aprochega-se da mala e começa a tentar abrir o fecho com cara vermelha de pimento, cheia de força a trincar os lábios. E o outro, o outro colega com cara de ciúme, declama em voz alta:
- Chegou o Engenhocas dos Dedos! Consegue fazer tudo! Ena pá, resolve tudo!
O outro finge que não ouve para não impressionar a malvadeza à senhora dos caracóis. E o ciumento, o barrigas ciumento, começa a pregar. Ainda por cima, a prega do licor, da origem do licor.
- Ouça, se não tem dinheiro, paga amanhã. Mas afinal, o que é que paga? Eu aponto, não tenha problemas.
A voz dos caracóis. Quer dizer, a senhora dos caracóis.
- Olhe, eu pago um licor.
O outro, transpirado a tentar abrir o fecho do dinheiro, pára a boca aberta a olhar.
- Um licor? Mas qual licor? Há tantos licores. É português? Sabe qual é a origem do licor?
- Diga, diga, conte, conte. Gosto tanto de histórias da origem das coisas, do licor que tanto gosto de beber. O licor da minha vida!
O mesmo outro, com olhos resignados à sua esperteza, continua na árdua tarefa de abrir o fecho.
- O licor vem das Beiras.
- O licor Beirão. Isso não é novidade, eu já bebo esse licor desde que nasci.
Desde que nasceu, pois é, desde que nasceu... A música já tem ritmo.
- Minha senhora, eu conheci o homem, os dedos e a cabeça que fizeram esse licor. E não é beirão. É do meu irmão!
- Seu irmão?!
- Sim, meu irmão. Alentejano de gema, das Barreiras ao pé de Ponte de Sôr.
O outro, cansado do fecho, resolve terminar a música.
- Pois é, minha senhora, mas sabe quem é o irmão dele?
O ciúme do barrigudo esconde-se.
- Quem é?
- Sou eu, minha senhora. E este fecho tem de ser cortado e depois cosido outra vez. Passe cá amanhã, que temos feijoada.
A esperança do ciúme fala de licor.
- Sim, passe cá amanhã. Depois fazemos contas. Quer um licor...?
Sorriso a olhar para os dois. Os dois licores, os dois amores.


Comments:
mas que merda!
 
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