quarta-feira, dezembro 14, 2005
A Voz do Medo
A escola era a mais antiga da cidade. Por trás do pátio, as sebes de tamanho grande escondiam os verdes de botas pretas com boinas cor de bosta pindérica e pendericalhos de cor fatela a fazer de rabo de cauda. De vez em quando, da minha carteira do lado da janela virada para os palácios de pedra estátua, ouvia toques cómicos. Toques de corneta.
O Gonçalo. O Gonçalão olhava para mim. E eu para ele. Já nos conhecíamos há muito tempo. Eu já sabia quando é que ele ria, gozava e chorava. E ele a mesma coisa, topava-me nas horas de ginjeira.
- O que é que se passa aí atrás? Qual é a risota, pode-se saber?
Quando a professora acordava o monstro que vivia dentro dela, começava a ficar estremunhada, mexida e misturada, com salto alto nervoso em cima do estrado poeirento.
Eu e o Gonçalão baixávamos logo a cabeça, encostando os narizes na sebenta. Mas ainda conseguíamos rir baixinho dos olhos do Bruno Janardo. Nessa altura, ainda não era o Nharro do Bairro do Mergulhão, mas o moreno das miúdas, especialmente da Joana Banana e da direitinha da Raqueló.
- Bruno Moringa Janardo!
- Sim, Professora!
Já estávamos safos. Ainda bem que a carteira não era de três, senão éramos o trio perfeito.
- Posso saber qual é a risota, Bruno? O intervalo já foi há um grande bocado. Diga lá do que se está a rir para eu me rir também!
- Ó Professora! Não está a ouvir lá fora?
A corneta ainda tocava lá fora. Mas já não tínhamos forças para ouvir. Ríamos do Bruno que nem uns perdidos e achados.
- Ouvir o quê? Vocês ouvem muitas coisas. Devem ter uns ouvidos caninos. Eu não ouço nada!
- Caninos, Professora?! Os dentes?
Pronto. Já estava o caldo de risota entornado. Não era só eu e o Gonçalão, mas toda a classe.
Pá, Pá, Pá. Pá no estrado. E a voz da professora começava a ficar levemente grossa. Rouca. Rouca de reumático de salto alto.
- Pouco barulho! Mas o que é isto? Eu vou chamar os vossos papás para falarem comigo sobre esta risota! Mal educados!
- Mal educados? Que é que quer dizer com isso? Estamos a rir! E então? Teve piada. Estamos proibidos de rir?
O Gonçalão foi sempre o mais rebelde. Desde a onda de popa no cabelo franzino, até às palavras cunhadas com rigor.
Eu observava. Ele sabia que estava com ele, braço direito e camarada. Mas eu não tinha coragem. Tinha medo de falar. Fosse tenor ou voz de grilo. Tinha medo. Medo. Só não tinha medo quando estava sozinho. Sozinho e a minha voz. Mas isso o Gonçalão não sabia.