quarta-feira, dezembro 07, 2005

Ensaio de Profissão

- O que é que queres ser quando fores grande?

- Eu quero ser bombeiro. Com capacete amarelo e subir as escadas da “Magirus”.

O Gonçalão queria ser carteiro de bicicleta. Queria estar sempre a pedalar para todo o lado. E o Bruno Moringa queria ser médico. Gostava de andar de bata com a varinha mágica. Mas de feiticeiro, ele não herdava boa poção.

Foi o meu primeiro Quero Ser. Bombeiro. Com o quartel a tocar a sirene, a entrar de botas a correr no carro vermelho. Queria apagar fogos, com uma mangueira gigante para derreter as labaredas zangadas dos pinheiros a gritar. Sim, os pinheiros gritam. Todos os pinheiros gritam. E eu tinha o poder. O poder de apagar o grito.

Já estava maior, pois já via as coisas mais pequenas. Uma dessas coisas eram as pedras. Fósseis. Via pedras com círculos muito perfeitos. Os caracóis. E fazia-me confusão encontrar estas pedras no monte onde eu brincava, em Vale de Estacas. Se o mar está tão longe, e este monte é tão alto, como é que vieram parar aqui estas pedras? Será que os caracóis de pedra escavaram a terra por baixo? As minhas perguntas do meu segundo Quero Ser. Estudante de Pedras.

Com as pedras e os castelos, quis ser Arqueólogo. Queria destruir todo o planalto e escavar, escavar até ao rio. De certeza que iria encontrar uma cidade de pessoas escondidas de culturas antigas. Uma cidade do passado.

Hoje. Céu de azul quente. Sentado no banco, via e ouvia barulhos dos pássaros bailantes nos galhos das árvores. Sentia a harmonia à minha volta a descansar os meus olhos. De repente, ouço um varrer corrediço. Um varrer de chão. Abrasivo. De interrupção malfadada. Um engano dos meus ouvidos, concerteza. Quando olho para o lado, vejo uma farda verde, de bóina acima, a construir pirâmides de folhas. Das folhas que nasciam das árvores, que aprendiam com o vento, que caíam com o tempo. Pá ferrugenta, folhas para o saco. Pá ferrugenta, folhas para o saco. Sempre assim. Um movimento constante, sem vida, sem respirar sequer o cheiro da vida das folhas, sem ouvir o tumulto das árvores, sem falar.

E o mais macabro. Levantei-me e parei atrás dele. Do homem de farda verde. Ele não tinha olhar. Era um homem que já não tinha qualquer pingo de vida passada. Tive medo. Voltei costas sem pedir palavra. Não queria guardar recordação alguma daquele homem, daquele olhar morto. De um olhar que não queria ser nada.

 


Comments: Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?