quinta-feira, outubro 13, 2005

Gerações

 

Nos dias passados de queima, almocei algumas vezes por baixo de uma vinha. Sítio recatado no meio da azáfama urbana, onde relaxava alguns instantes preenchidos pela leitura.

Estava refastelado mesmo no canto do sopé da vinha, a ler contos dispersos, quando sou interrompido por uma voz baixa. Era o meu vizinho do lado.

 

“Amigo, cê empresta um cigarro?”

 

O meu vizinho do lado era uma personagem castiça. Chapéu panamá, cabelos de seda brancos, que continuavam pela cara farfalhuda de pêlos, também brancos.

Percebi que era um velho. Um velho estrangeiro de passagem. E como estava de passagem, meteu conversa com a minha leitura.

 

“Eu não empresto cigarros, ofereço.”

 

Passo o cigarro e fico à espera de resposta.

 

“Brigada, amigo. É a velha desculpa de deixar os cigarros em casa. Tou vendo que cê está a ler Hemingway. Qual é o livro?”

“Estou a ler um livro de contos. As Neves de Kilimanjaro. Gosto da escrita dele, pelo facto de ser muito actual. Como se o conto tivesse sido escrito ontem.”

“Ahhh... Hemingway. Gosto muito do livro dele, que é... aquele do pescador que luta com os tubarões...O Lobo e o Mar...”

 

Corrijo, com um sorriso.

 

“O Velho e o Mar.”

“Isso, isso. Velho como eu mas não tão gordo. Eu gosto muito de comer, sabe? Aqui em Portugal, a comida é um manjar dos deuses. O bacalhau... e as sardinhas?”

“Sim, as sardinhas. E os pimentos, bem regados com azeite.”

 

De repente, aproxima-se uma mulher. Era a companheira.

 

“Maria, tô falando aqui com... como cê chama mesmo?”

“Damião.”

“Prazer. Bernardo. Aprêsento a minha namorada, Maria”

 

Muito tímida. Mal ouvi o agradecimento.

 

“Nós tamos aqui em Portugal há pouco tempo. Adoro esta cidade. Lisboa. Eu vivi muitos anos no Alentejo, no Redondo, cê conhece?”

“Só de passagem. Mas conheço os vinhos.”

“Tá vendo, Maria? Nós devíamos voltar pra lá. Passámos lá bons anos. Depois fomos para o Brasil, para o Rio. Cê conhece o Rio?”

“Não. Conheço pouca coisa fora de Portugal. Mas conheço bem o meu país! É muito rico, tem história.”

“É verdade. Olha, cê não quer ver o meu trabalho? Eu tô expondo umas obras ali na Mãe D’ Água. Vou estar aqui um mês. Se quiser, diga que conhece o Bernardo e não paga.”

“Está bem. Vou passar por lá para o cumprimentar.”

“Isso. Bem, nós temos de ir. Damião, prazer em conhecer. Gostei muito deste bocado. E tenho de comprar esse livro do Hemingway.”

 

Já levantado, dá o último gole na zurrapa de vinho tinto do dia. Faz um aceno, e eu respondo com a palma da mão.

 

Um dia depois, passei pela Mãe D’ Água. Estive mesmo para entrar, mas voltei para trás. Não me queria esquecer daquela voz. Genuína. E não queria repetir a história.

 


Comments:
Adorei este pequeno texto, Damião... Tens tantos nomes giros!
 
Eu entrava! Ficava curiosa para saber o que ele está a expôr, como é, ligar a voz a mais qualquer coisa, completar a história...
 
Quando li pensei que entraria... Mas depois do comentário da ilha já não sei... Sou curiosa, mas também gosto de guardar a magia...
Repetir uma história é mesmo má ideia!
 
Não ia repetir, ia completar...Não gosto de deixar as coisas a meio.
 
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