sexta-feira, outubro 21, 2005

Assobio de Peixe

 

A carruagem anda aos magotes, aos soluços pelo meio da chuva. Não há sítio para sentar. Lotado. Superlotado.

Com os olhos de papeira, vou lendo algumas frases do “Estrangeiro” para começar o fim da semana. Chego ao apeadeiro de saída e a lota da carruagem despeja o cardume para as escadas. Dou prioridade de ultrapassagem à pressa e vou andando, mais caminhando, no meio daquela corrente.

Quando olho para trás, vejo dois peixes. Um graúdo e outro miúdo. Vejo a mãe a sacudir a petinga que dormia em pé. Parecia que estava a sacudir um tapete cheio de pó.

Acorda, acorda, diz ela. Aos gritos. Por favor, não posso levar-te ao colo. És muito pesado. És chumbo.

A petinga não ouvia. Sonhava concerteza, com o dedo na boca a fazer de chupeta.

A mãe não sabia o que havia de fazer. Estava quase a entrar em pânico. Olhava para todo o lado à procura de ajuda.

Chego ao pé dos olhos dela e digo-lhe para ter calma. Digo-lhe para assobiar. Ao ouvido. Ele precisa de ouvir a música que lhe cantava quando ainda era girino.

Como se ele estivesse no mar.

 


Comments:
E resultou? Os livros dos psicólogos dizem que sim; não que eu leia, mas ouvi dizer e confeso que tenho as minhas dúvidas.
 
Nunca nos esquecemos da nossa existência aquática no ventre da mãe. Nunca desistimos completamente de ser peixes ou girinos... No ventre, as vozes chegam-nos abafadas e isso é estranhamente reconfortante. Os sons agudos ficam mais aveludados, mais macios, mais graves. Acho que é por isso que as canções que as mães cantam são sempre graves e lentas, como se as mães estivessem muito longe, mas logo ali... Como se estivessemos de novo dentro de água.
 
Anoeee, as tuas palavras embalaram-me. Vou cantar e assobiar para a minha barriga.
 
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