terça-feira, agosto 02, 2005

Cronicando

Assisto a um grande espectáculo que passa despercebido a olhos cansados, habituados a dias de calor, esmagados por costumes e tradições rotineiras.
Observo com a paciência de quem se atreve a pôr a primeira peça de um puzzle.

O pai, mais velho, prepara a agulha ferrugenta com o fio de lã mais grosso que existe na mochila aberta com cores quentes e noveludas.
Um trabalho que pede calma, sintonia e abstracção dos carris, do revisor, dos olhares que batem no reflexo da carruagem, das conversas de relato de fim de dia, das folhas de um jornal já lido e martirizado e das moedas avulsas que saltam pelos dedos do passageiro desesperado que se esqueceu do bilhete.

E a filha, mais nova, sorri entre dentes para o feito do pai.
O pai entrega a agulha com a linha passada para o continuar do tricotar no cartão. E ela continua a fazer pontos.

Muito precisos, sempre vigiados pelo olhar orgulhoso e atento do pai.
O fio laranja é adormecido com graciosidade no bailado da agulha.

As mãos miúdas são forma, como jeito nascido de instinto primitivo que percorre o saber de construir. O pai não mostra indiferença e distracção. Mantém-se fiel. Não se deixa perturbar com barulhos dispersos e perdidos.
Olha sereno e corajoso, dando força ao diálogo em silêncio. Um diálogo genuíno.


Comments:
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
 
Gosto sempre tanto das palavras que encontro em Marrakech. São um misto de criatividade com um domínio surpreendente da linguagem.

Adoro comboios. O som continuo dos carris quase que me adormece, quase que me desperta... A paisagem em movimento faz-me viajar muito além do horizonte e sonhar sonhar sonhar...
 
Enviar um comentário



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?