terça-feira, junho 27, 2006

Bichos


Vou para o jardim. De flores, árvores e bichos daninhos, de ventos que brincam nas folhas que adornam o dia de céu fosco. Arrasto um peso de memórias que os bichos vão levando, divagando no tempo, guardando nas tocas construídas com o propósito do Inverno.

As memórias, essas, são pesadas. São sempre pesadas. Algumas pesam mais que outras. Com isto não quero dizer que a memória mais antiga que tenha seja a mais pesada. Ou a memória que nasceu agora seja a mais leve.
As memórias são pesadas por elas mesmas, sem se ligarem ao tempo que permanecem. E esse é um mistério que nunca consegui desvendar. Dizem que quando se descobre uma memória, ela atraiçoa-nos, fazendo com que nós voltemos para trás o tempo. O tempo, esse não volta para trás, já dizia o outro. Nós é que voltamos a esse tempo, à procura da nossa existência de uma vida que passou a memória.

Por isso é que gosto de bichos daninhos, como os de conta que se enrolam em bolota, como as minhocas com centenas, milhares de pernas, como as formigas obreiras sem descanso, as abelhas zebra com riscas amareladas, as libelinhas irritantes, os escaravelhos gordos ou mesmo a mais perfeita bailarina dos ventos, a borboleta.
Estes bichos não têm tempo para ter memórias. Quando acaba uma estação, já estão a pensar na próxima. Largam as peles, as couraças e asas para começarem uma nova vida.

Hoje é o começo de uma nova estação. E as formigas não páram de trabalhar de um lado para o outro. Levam as minhas lágrimas pesadas, em entreajuda, para guardarem no longínquo formigueiro. São as reservas do próximo tempo, da próxima estação que virá. Do nascimento de uma nova vida.


segunda-feira, junho 26, 2006

Meus Olhos


Olhos.
Pesados. Cor de chumbo.

Olhos.
Sentados. Nas palavras da loucura.

Olhos.
Fechados. No caminho da ausência.

Olhos.
Perdidos. No vazio.

Olhos.
No rio do meu sangue.


sexta-feira, junho 23, 2006

Carta de Lisboa

"Une Lettre Trouvée à Lisbonne", Miguelanxo Prado & Eric Sarner

"Eléctricos: em andamento, pedaços de cor, puzzles das paredes e dos passeios. Os velhos eléctricos percorrem os velhos bairros de Lisboa. Morrem uns atrás dos outros, mas nem todos. O 28, por exemplo, não conseguiria morrer. Parte do Largo Martim Moniz, continua para a Rua da Graça, roça o castelo, segue para a Sé, desce a Rua da Conceição, paralela ao Tejo, na Baixa e, pela mesma via, sobe ao Chiado e depois mais para cima até à Estrela. A bordo, as pessoas aparentam estar aborrecidas por estarem ali ou por, de facto, não estarem ali. Aquela mulher de alcofa ou o seu companheiro de banco: estarão mesmo a dormir? Ou estarão a sonhar que dormem?"

Obrigado, Mãe. É mesmo como tu disseste, uma carta escrita na cidade para a cidade.

quarta-feira, junho 21, 2006

Dia Maior


Senta-te.
Não olhes a sombra.
Ao pé de ti.
Na ponta da luz mais longe.

Espera.
Por mim.


segunda-feira, junho 19, 2006

Contos do Jasme



"Olá. Quando é que eu começo a pintar o Sol?"

O Jasme nasceu. Não conhece o mundo, mas conhece a luz, a luz do sol.

"Vou pintar todos. Da cabeça dos pés às nuvens do mar."

O Jasme vai pintar a luz do sol. Todos os dias. E hoje é o dia de Luzédia-Mar.

sexta-feira, junho 09, 2006

Contar os Dedos


Um, dois, três, quatro, cinco.
Mãos em frente,
Puxar o trinco,
Abrir a janela,
Respirar.

Esperar a sombra,
Mãos em pala,
Olhar ao fundo do horizonte.

Punhos em parapeito,
Cara estendida,
Vento. Frio.

Abraçar.

Um, dois, três.

Truz, truz, truz.
Já vou, já vou.

Um, dois, três.
Está frio. Muito frio.
Abraça-me.
Já vou, já vou.

Vem depressa, por favor.
Está frio. Muito frio
Aqui. Estou aqui.

Nunca estás aqui.

A janela.
O frio entra pela janela.
Nunca me vês.

Abraça-me.

Vou embora,
Não me queres ver.
Estou aqui. Estive sempre aqui.
Fecha a janela para ver se estás.
Aqui. Estou aqui.

Morro. Sabes que morro.

Um, dois, três, quatro, cinco.
Fechar a janela,
Adormecer no chão,
Beijar as mãos,
Dobrar as pernas,
Frio. Estou aqui.


terça-feira, junho 06, 2006

Quem és, Amor?


Recebi este livro das mãos da minha irmã, que por sua vez recebeu das mãos da minha mãe. Imagino uma história de amor de outros tempos, entre olhos que nunca se viram, que nunca se tocaram.
Um amor desconhecido que foi sentido nos olhos de quem escreveu, que não deixou o amor perdido à deriva nos caminhos da memória.
O livro está nas minhas mãos. E vai andar sempre comigo até descobrir quem és, Amor.


segunda-feira, junho 05, 2006

121


Vou sair daqui com passo a querer saltar para os degraus da porta 121. Número capiqua, que provavelmente quer dizer que tenho de atar os meus chatos e desatados atacadores no primeiro degrau; no segundo degrau olho para longe, para a luz do sol, para a lua que me visita todas as noites, para o vento que me leva para o rio. E deixa-me acenar um sorriso; o terceiro degrau vai ser o meu primeiro degrau na Escola das Ficções e outras Alegorias.

Adeusadeusadeusadeusadeus...


sexta-feira, junho 02, 2006

Íris


Íris. O nome da rapariga com os olhos mais bonitos é Íris.
Chama-se Íris. Não conheço a Íris. Nem eu nem os meus amigos de matilha da quarta classe. Não conseguimos olhar para ela como ela olha para nós, mas continua a ter os olhos mais bonitos.
- Íris, podes começar a ler a composição? Todos calados para ouvirmos a Íris!!!
Para quê dizer? Para quê? Não vale a pena gastar palavras roucas para nós ouvirmos. A Íris é a nossa chama, a nossa deusa, a nossa árvore de fruto. Esperamos todo o tempo do mundo por ela sem pensar no toque para o recreio.
- Professora, eu não fiz o trabalho de casa como os outros da classe...
- Então??? Não sabes o que é que gostas de fazer? A composição era fácil, não há desculpa para...
- Sim, Professora, eu sei. Por isso mesmo é que não escrevi. Pintei.
O Lúcio não aguentou. Ele gostava mesmo dela.
- Professora, ela pinta muito bem. Ela quer ser pintora!
- Ai sim?! Mostra o que pintaste, Íris! Não tenhas vergonha!
Íris ficou vermelha. Ela não sabia como mostrar.
- Professora, eu pintei uma cor na folha que era para escrever a composição.
- Uma cor?
- Sim, Professora. Uma cor. Como não sei qual é a cor que pintei, gostava que todos dissessem qual é. Gosto de pintar, mas tenho de saber qual é a cor que eu mais gosto. Esta é a minha composição, Professora. Uma cor. Uma cor dos meus olhos que não conseguem ver.
Os outros da classe não falam comigo porque não me vêem. Agora podem ver-me nas cores que eu pinto. Podem ver-me a pintar as cores que eles mais gostam. E se eu souber qual é a cor que eles mais gostam, eles gostam de mim sem olhar para os meus olhos.


dedico a "Íris" a todas as crianças do mundo que vivem comigo.
lembras-te das corridas que fazíamos? Olá, Pedro. Espero que me leves às cavalitas um dia.


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