segunda-feira, abril 24, 2006

Miragem


O voo perfeito
É a diluição dos pássaros
No céu.

O verdadeiro azul
É a junção das asas
Dos homens
E das aves,
Até não haver outra cor.

As penas das asas
Serão tantas
Que o mar há-de viver os pássaros nas águas
E as ondas
Serão apenas
O voo perfeito.

Rui Pedro Gonçalves, "Noites na Granja"


sexta-feira, abril 21, 2006

Aguarela



Postal de 1939, "Guarda de linha férrea com mala de correio"

A Idade do Vinho

A bondade. A palavra é simples e clara como a água: bom de dar ou bom dar. Os mais crentes da bondade acreditam que pode ser boa caridade. Não concordo. Acho que bom dar não é a mesma coisa que dar a cara com a idade. Mas não vamos discutir agora sobre a idade.

É curioso ver as palavras que escrevemos e dizemos, desbaratando um ao outro num diálogo casual do dia-a-dia.

- Ele é um homem bom!
- Como era bom que ele ficasse sempre a ver o sol junto ao mar. Ficava mais calmo. E assim partilhava o olhar.
- Mas ele é um homem bom!
- É??? É bom? Tem bondade, então. É bondoso. Por ser bondoso num momento, é um homem bom. Não vai ser bom para toda a vida!
- Pois não, você tem razão. Ele é apenas um homem. Um homem de bondade. E se a bondade aconteceu uma vez, acontece para sempre.
- Não acredito que ele seja assim todos os dias. Lá porque ele partilhou a colheita de vinho, não quer dizer que seja bom de dar.
- Bom de dar. Bondade. A bondade é partilhar. Nem que seja um copo de vinho. É único, fica sempre contigo. Como o sol junto ao mar.


quarta-feira, abril 19, 2006

O Primeiro Parabéns do Sofá



Estive deitado na relva alguns minutos. Cansado como ando, nem dei pelo começo do sonho. Comecei a sonhar com palavras do Dicionário dos Sonhos. E sonhei com a palavra Anno, com fonética italiana, quase a cantar.

Anno: Uno ou Uma; Casa Um. Tempo de germinação de uma flor no Sol das Primaveras; dia dos Três Tempos. Fonte vinícola do Jardim das Gargalhadas.

Acordei. Está aqui um gato a fazer uma chiadeira...
Deve pensar que é toupeira,
Uma toupeira miadeira
A fazer buracos na relva para guardar o miar
Que mais parece a chiadeira de bicicleta chocolateira.

Chiu. Deixa-me escrever o
poema.




quinta-feira, abril 13, 2006

Jardim de Luz


Tenho de ser rápido. Mais rápido que a luz do meu tempo, da minha vida sonhada, da ilusão do meu acordar. Do acordar noutros olhos, noutros sítios esquecidos no tempo da minha lembrança.

Nasci. Nasci no tempo submerso da atmosfera.
É. Estou deitado no jardim de luz. A sentir o tempo da luz. O tempo que incendeia a luz. A luz do destino.



terça-feira, abril 11, 2006

Entre Pedras


- Dizem que a pedra é um elemento inerte.
- Por ser pedra?
- Não, por ser fria. Um ser frio, desprovido de vida.
- Eu acho que a pedra é. Se tocarmos na pedra com as nossas mãos, ela é fria ao nosso toque tímido...
- Tímido? Porque é que é tímido? Um toque é um toque, seja ele qual for.
- Tímido. Um toque é sempre tímido. É como o desejo. Nunca desejaste ser tocada?
- Convenceste-me. E...
- ...Ela é fria ao nosso toque tímido. Mas se a abraçarmos, a pedra é quente. Então, como é que a pedra pode ser inerte se também é quente?
- A pedra não tem vida. Quando entrelaças os meus pés nos pés da minha amada, a pedra é. A pedra é fria.
- Como pode ser fria no gelo mais gélido que existe. Mas quando largas uma lágrima na pedra, ela derrete.
- A pedra derreter?! Que disparate!
- Sim, que grande disparate. Ela derrete. Ela, a amada. A pedra é. Como a vida das nossas sombras.


segunda-feira, abril 10, 2006

A Voz de Mariana


- Mariana! Mariana! O que é que eu já lhe disse?! Ainda é muito cedo para o almoço!
- Mas...
- MARIANA! É PRECISO REPETIR? AINDA É MUITO CEDO!!!

A voz de Mariana queria falar, queria pedir, gritar, suplicar por ajuda. Não queria caridade. Queria uma palavra de afecto, um abraço, um sorriso no olhar.
Mas Mariana não deixava. Mariana tinha de obedecer ao homem bruto do restaurante, à voz bruta de vilão.
Mariana tinha de comer. Precisava de comer. Todos os dias.

A voz de Mariana queria chegar mais cedo para conversar com amigos. Mas Mariana já não tinha amigos. Mariana já não tinha ninguém. Mariana estava sozinha. E foi embora. Sozinha. Sozinha, pelo silêncio do jardim até ao número 4, que era o número da porta da sua casa abandonada no largo do jardim.

Era muito cedo. Mariana tinha chegado muito cedo. Mas a voz de Mariana sabia esperar. Sabia esperar a fome.
A voz de Mariana tinha esperança. Tinha esperança no homem bruto, o seu único amigo. Todos os dias.



quinta-feira, abril 06, 2006

Frases da Rádio


"Radical é andar com os pés bem assentes nas nuvens."

Já não fui a tempo de ouvir o autor da frase radiofónica. Fui com o vento para as nuvens do rio.
Adeus, adeus, adeus...


quarta-feira, abril 05, 2006

Hoje


A change of speed, a change of style.
A change of scene, with no regrets,
A chance to watch, admire the distance,
Still occupied, though you forget.
Different colours, different shades,
Over each mistakes were made.
I took the blame.
Directionless so plain to see,
A loaded gun won't set you free.
So you say.
We'll share a drink and step outside,
An angry voice and one who cried,
We'll give you everything and more,
The strain's too much, can't take much more.
I've walked on water, run through fire,
Can't seem to feel it anymore.
It was me, waiting for me,
Hoping for something more,
Me, seeing me this time,
Hoping for something else.


Joy Division - New Dawn Fades


terça-feira, abril 04, 2006

Tempo de Pêndulo



Quando não estou a escrever, perco tempo em muitas coisas. Umas delas é pensar. Pensar como o tempo pensa.
Apercebi-me disso quando olhei para um relógio de pêndulo, pendurado na parede da tasca do Papagaio, igualzinho ao relógio de pêndulo que também está pendurado noutra parede, desta vez na casa da minha avó.
Quando fazia as minhas sestas de gaiato obrigado, ouvia o trabalhar dos ferros do relógio. Era uma máquina viva: tlim, tlac, tchum, rumpf, tlim, tlac, tchum, rumpf.
Quando dava as horas parecia que ia rebentar estardalhaço. Só não tinha o cu-cu, como já vi noutras casas. Mas ainda lá está, na casa da minha avó, a passar o tempo.

O tempo, seja ele onde estiver, onde nasceu e onde morrerá, é o tempo. O tempo que pensamos.

Pensamos. O que eu vejo agora neste amontoado de gente à minha volta, é o tempo a passar, corrido e conversado, mas ninguém presta atenção ao tempo a pensar.
Percebi outra coisa. Devo emendar-me quando falo sobre o tempo. Não posso falar no tempo que pensamos no plural, mas no tempo que eu penso no singular.

Acabo a prosa em tom de pergunta: pensamos no tempo quando estamos sozinhos?




segunda-feira, abril 03, 2006

O Preço da Lição


Estava bem. Estava.
Já tinha guardado os olhos que tinha visto daquele dia. Os olhos do ódio a olhar para os meus olhos.
Cumpri o meu papel, fiz a minha função. Ajudei a salvar uma vida do ódio. Hoje tive o reconhecimento daquele dia, pois o ódio reconheceu-me.

- Bom dia... Olhe, você também estava aqui naquele dia, não estava?
Nem queria acreditar. Nem sabia o que havia de dizer.
- Sim, estava... Está tudo bem consigo? A criança está bem?
- Sim, já ando mais calma. A criança está com o pai e está bem. Naquele dia, aprendi uma lição de vida. E queria retribuir, queria agradecer.
- Não precisa de agradecer. Agradecer o quê? Não diga disparates. Tenha mais calma a viver a sua vida.
Ela nunca mais ia embora. Olhei para todos os lados à procura de caras conhecidas e não via ninguém. Queria sair dali.
- Olhe, mas eu insisto. Eu levantei dinheiro para lhe dar. Para você não se esquecer de mim.
- Desapareça da minha frente! E descanse que eu não me esqueço de si.
O comboio tinha chegado. Corri para a primeira carruagem e entrei. Não queria olhar para trás.
Não queria que ela visse os meus olhos.



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