quinta-feira, março 23, 2006

Antúrio


Olá. Sabes que não sou muito de escrever. Nem sei escrever, por isso vou ser breve.

Olá. Estou longe. Muito longe. Não imaginas os sítios por onde passei nem o que vi para escrever o que estou a escrever. Sítios belos. Puros.
Imagina o sítio mais infinito que vive nos teus olhos.
Imagina. Imagina que o consegues ver tão perto que sentes o seu cheiro na palma da tua mão. Imagina. Consegues sentir? Consegues tocar?
Eu estive aí. Longe, muito longe.

PS: Estou aqui. Sempre.


quarta-feira, março 22, 2006

O Banco de Jardim

ilustração de Filipe Abranches

"Naquela altura eu não percebia
as mulheres. Aliás agora também não. Nem
os homens. Nem os animais. O que percebo melhor,
e não é dizer muito,
são as minhas dores."

Samuel Beckett, Primeiro Amor

Ouvir Poesia


Todos nós somos egoístas. Não no sentido de não querer partilhar, mas de termos medo. De termos medo de mostrar aos outros o que sentimos.
Ontem ouvi vozes de poesia. Poesia trágica, cómica, fatalista e romântica. E dois poemas de amor.
Também ouvi uma voz que ouvia poesia a dizer que os poetas eram egoístas, só pensavam no seu umbigo. Ninguém ligou à voz que ficou calada na parede, porque todos ouvíamos vozes de poesia. E dois poemas de amor.

"Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci."

Maria do Rosário Pedreira


terça-feira, março 21, 2006

Acordar um Poema



às vezes, escrevendo o teu nome na fotografia
que trago no bolso das minhas forças, sorrio:
uma criança atravessa-nos a correr as bocas
e vai esconder-se por detrás dos nossos olhos

José Viale Moutinho, "E Se a Manhã Fosse Outra?"



segunda-feira, março 20, 2006

O Esboço da Flor



Se eu fosse pintor, começava pelos olhos, castanhos cor de terra escura, cheiro de terra molhada.
Pintava os olhos delicados de horizonte, tocava o traço da sua face salpicada de botões-rosa e apoiava a cara arredondada no desenho da sua mão levantada pela sombra do cotovelo.

Depois passava para o movimento dos cabelos. É o traço mais difícil, mais sensível. Qualquer toque nervoso e o vento desfigura, como quem toca no dente Coração-de-Leão da Primavera.

Faltam os lábios. Os lábios. Gosto de desenhar as linhas dos lábios, do beijo dos lábios quase carnudos, que palpitam de arrepio para sentir o beijo, o beijo dos lábios brancos pálidos que fervem em vermelho cor de lacre.

Se eu fosse pintor, era este o esboço. O esboço de uma flor.



sexta-feira, março 17, 2006

Planeta Novelocolor

Janeiro de 2006


As cores são de todos.
Por isso, todos nós somos uma cor.
Qual é a tua?

quinta-feira, março 16, 2006

Asas de Amor



Está quase, está quase. Elas estão quase a chegar.

A Lua, essa feiticeira que encanta a noite, adormece a noite de Inverno de todos os olhos que se vêem pela última vez, onde todo o mal que vive guardado nos nossos olhos é perdoado, onde todo o mal é soprado pela noite de Inverno, onde todos os olhos se amam pela última vez.

Silêncio, silêncio. Elas estão quase a chegar. Ao longe, já se ouvem as asas, já se sente o vento a ir embora com a chegada do bando de asas. Elas, as asas de amor.

Mais perto, mais perto. Elas estão mais perto, quando a Lua está mais brilhante, quando a Lua lança a sua magia.

As asas chegaram. Chegaram ao ninho da chaminé que outrora foi fornalha da cobiça, da cobiça pelo amor que não nos pertence.
As asas chegaram. Chegaram ao ninho da chaminé que agora é a fornalha do amar, do amar pelas asas de amor, que esperam, que esperam pela noite dos bicos cantados das cegonhas, dos aconchegos, dos abraços de calor, do toque que alimenta o vazio da alma, do sussurro de suspiro, do grito de paixão, do desejo de amar.

Está quase, está quase. Elas estão quase a chegar. Elas, as nuvens que escondem a Lua de feitiço, amor da noite das asas de amor.




terça-feira, março 14, 2006

As Impossibilidades



"É que, na infância, não conhecemos o significado da impossibilidade...
...tanto podemos cavalgar num leão ou numa abelha."

A frase era maior, mais extensa, mas fiquei com esta parte. Entrou no ouvido e ficou.
Comecei logo a rir, com as minhas impossibilidades de criança.

Não conseguia subir o muro da minha rua com um salto, só com o joelho a esfolar o cimento.
Não conseguia deixar de chorar quando levava com o vento gelado na cara quando o meu pai me levava de mota a descer a Rampada para a casa da minha avó.
Não conseguia deixar de dormir abraçado ao meu urso cor de laranja.
Não conseguia apanhar musgo com as minhas mãos, pois as lagartas da terra faziam cócegas.
Quando estava sozinho em casa, não conseguia sair do meu quarto. Só imaginava sombras a passar no corredor do outro lado da porta.

E até hoje não consigo uma coisa. Uma coisa impossível. Cavalgar num alfaiate no lago onde fazia piqueniques com os meus avós.



segunda-feira, março 13, 2006

O Cordel da Oliveira


Não estou habituado , mas ainda consigo pedalar sem mãos no volante da bicicleta. No volante, não. No guiador, que está ligado à forqueta do espigão da bicicleta. Apesar de não perceber nada de mecânica, gosto das palavras que se referem às peças das bicicletas.
Com os braços amarrados em equilíbrio perfeito, lá vou eu, a pedalar na estrada de terra batida com alguns buracos maiores que poças de jogo de berlinde.

"Que é isto?! Que é isto?", falei para comigo de coração ao alto. Nem tudo é ar puro e ramo verde a andar pelos campos da lezíria. Um cãozote destemido de meio palmo de altura quer assustar-me com um regabofe de latidos ao som da bicicleta. O primeiro impulso é ter medo, e é com o medo que vem o pontapé no focinho.
O raro é ignorar o medo. E consegui fazê-lo, a cheirar o vento dos pinheiros e eucaliptos à minha volta. Olhava para ele, a rir do meio palmo de altura do cãozote. Ia morder o quê? A unha do pedal?

Sempre a ladrar o soluço do ladrar, o cãozote desiste de alcançar a roda traseira da bicicleta. Como se costuma dizer, cão que ladra não morde. O que vale é que o costume tinha meio palmo de altura. Olho para trás e percebo o porquê da desistência. Estava a guardar o caminho da vinha. E a vinha tinha chegado ao fim. Não sei de quem é, mas deve ser de quem lhe dá de comer. Secalhar o dono também deve ser baixo de palmos de altura. Tal cão, tal dono.

Chego a um cruzamento. Travo a fundo, desmonto do selim da bicicleta e fico a olhar como um ponteiro de relógio a imaginar o melhor caminho. Ir em frente foi a decisão.

O caminho começa a encurtar, só aparecendo erva daninha nas bermas e no meio do caminho, indicando que só passavam tractores e alfaias agrícolas. Mas não passavam há muito tempo. Parecia que o caminho estava esquecido. Passadas algumas ramadas de erva, chego a um precipício de oliveiras. Uma vista surpreendente!

Oliveiras no topo a segurar o vento e os pinhais lá ao fundo, a esconder o Tejo. Deixei-me estar ali um pouco a descansar, como se fosse uma árvore a respirar a terra.
Ao vir embora da paisagem de contemplação, apercebo-me de um cordel bem grosso, a dar um nó num ramo de oliveira. Fico assustado.
Para estar ali uma corda, alguém ou o quê executou um julgamento de uma vida. E a oliveira amarrada era um castigo. Um símbolo de vergonha.
Era a única oliveira que estava sozinha, que não tinha companhia. Nenhum pássaro vivia, dançava ou cantava nos seus galhos. Nem olhavam para ela, tal era a vergonha.
Foram todos testemunhas de um julgamento. Um julgamento atroz. E era a vergonha do orgulho que dava vida ao cordel, a enforcar os ramos da oliveira.

sexta-feira, março 10, 2006

One Small Day



Faz hoje um ano. Um ano. Faz hoje um ano que percebi. Somos efémeros.


If the stack is high against you
And the hammer's coming down
And the time that's yours lies heavy in your hands
Oh my sentimental friend
The fast much reach an end
Lying face down on the cold stone
And they give their all to you
But their all is slipping through your hands
Oh my sentimental friend
Your time will come again
One day where I didn't die a thousand times
Where I could satisfy this life of mine
One small day

One day where every hour could be a joy to me
And live a life the way it's meant to be
One small day
How many times has it turned against you
How many times will they walk away
How many times have you let depression win the fight
Oh my sentimental friend
We'll walk as one again

How many times has it turned against you
How many times will they walk away

One day where I didn't die a thousand times
Where I could satisfy this life of mine
One day where every hour could be a joy to me
And live a life the way it's meant to be

One day where I wouldn't feel my senses die
Where nothing made me hang my head and cry
One day where I could see myself as others do
Where I could feel the strength of love at hand

One day where I didn't die a thousand times
Where I could satisfy this life of mine
One day where every hour could by a joy to me
And live a life the way it's meant to be

Ultravox - One Small Day




O Beco do Arco Escuro


Uma escada de pedra começa e acaba o Beco do Arco Escuro. No cimo da escada vive a menina mais bonita do bairro, Mailea.
No baixio da escada vive o menino mais traquinas do bairro, Letrónio.
Mailea nasceu com um problema. O seu corpo está incapacitado de descer escadas. Por isso, a vida de Mailea é estar sentada no primeiro degrau e ver a luz ao fundo das escadas a apagar e a acender com o tempo.
Letrónio nasceu com um problema. O seu corpo está incapacitado de subir escadas. Por isso, a vida de Letrónio é estar sentado no primeiro degrau a ver os olhos apaixonados de Mailea.
Letrónio e Mailea apaixonaram-se com o tempo.
Por mais que puxasse pela cabeça, Letrónio não encontrava forma nem maneira para poder tocar nos olhos de Mailea. E resignou-se, com o seu destino marcado no primeiro degrau da escada do Beco do Arco Escuro.
Mailea, a sentir o desespero de Letrónio, começou a coser a malha de um cachecol com um fio de lã bem grosso. Sentada no primeiro degrau, o cachecol começou a descer os degraus ao encontro do seu amado Letrónio.
Letrónio, de olhos postos no vazio, sente a primeira carreira de lã cosida do cachecol a tocar-lhe no pé. E começa a sorrir. Olha para o primeiro degrau de Mailea. E sorri para os olhos da sua amada.
Letrónio pega no cachecol e começa a desfazer os pontos de lã e a passar nós de cosedura no longo fio de lã.
O cachecol estava desfeito. E Mailea voltou a coser o cachecol, para o cachecol poder subir as escadas do Beco do Arco Escuro.


quinta-feira, março 09, 2006

Calçada da Estrela


É noite. Uma mulher segue a amante pela Calçada da Estrela.
Leva um retrato amarrotado guardado no bolso há mais de uma semana.
Vai descalça para não ser ouvida. E sangram-lhe os pés.


Nota de rodapé: estas frases foram escritas a três mãos.


quarta-feira, março 08, 2006

Olhar o Amar


Olhar as estrelas.
Umbigo para cima, de cabeça para cima, de olhos abertos para cima.

Olhar as estrelas.
Entrar dentro dos teus olhos por dentro dos meus olhos.

Olhar as estrelas.
Deitado na terra, deitado no mar, deitado no céu do teu olhar.

Olhar as estrelas.
Acordar o meu toque da luz do teu sonhar de amar.



terça-feira, março 07, 2006

Revista Cais!


São todos amarelos. Aguns de boné, com óculos graduados ou de sol, de ganga rasgada, de calções verde tropa, cabelo comprido ou rapado, homem ou mulher.
O mais baixo, que é o amarelo que eu gosto mais, tem um sorriso surpreendente. Um sorriso perfeito. E até desconfio que tenha sido desenhado por um caricaturista.
Está no fim da escada rolante, de frente para todas as cabeças que vão aparecendo do formigueiro subterrâneo. E sorri sem respirar, a mostrar a revista.

Toda a gente vê o amarelo, olham para a revista e continuam para as escadas da saída.
Eu vejo o amarelo, olho para a revista e fico sempre à espera que talvez um dia, agora ou na próxima segunda, veja aquele sorriso a ecoar pelos túneis da Estação do Rato, a dizer bem alto enquanto estou nas escadas da saída: - Revista Cais!


quinta-feira, março 02, 2006

Sonhos


Porque é que os sonhos não vivem de uma vez só?


Someone take these dreams away,
That point me to another day,
A duel of personalities,
That stretch all true realities.
That keep calling me,
They keep calling me,
Keep on calling me,
They keep calling me.
Where figures from the past stand tall,
And mocking voices ring the halls.
Imperialistic house of prayer,
Conquistadors who took their share.
That keep calling me,
They keep calling me,
Keep on calling me,
They keep calling me.
Calling me,
calling me,
calling me,
calling me.
They keep calling me,
Keep on calling me,
They keep calling me,
They keep calling me.


Joy Division - Dead Souls



quarta-feira, março 01, 2006

Desistir


"E, se existir um horizonte, podemos olhá-lo e perceber finalmente que estamos parados no tempo e que o tempo, nesse presente definitivo, está parado dentro de nós.
Eu olho para esse horizonte, arrependo-me e não me arrependo, tento compreender ou lembrar-me daquilo que quero mesmo. Depois, penso em tudo aquilo que posso fazer para que aconteça: os gestos e as palavras. Depois, hoje é um dia mais forte e, de repente, imenso. Depois, penso em tudo aquilo de que terei de desistir para alcançar o que quero: para ser o que desejo ser.
Então, não fico triste."

José Luís Peixoto


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