sexta-feira, fevereiro 24, 2006

O Sentir


- Nunca mais me tornas a ver! Nunca mais!
Lembro-me de bater com a porta com toda a minha força, pegar na bicicleta, pedalar meia dúzia de passos pela rua estreita e sentir uma picada na cabeça. E mais uma. E outra. E mais outra, cada vez mais fortes. Perco o equilíbrio e saio da bicicleta.
Lembro-me de sentar num degrau de pedra, olhar para baixo e agarrar a cabeça com as minhas mãos. A minha cabeça gritava para dentro de mim, gritos de pânico, gritos do abismo que estavam a tomar conta de mim. Por momentos, senti que ia morrer. E não me lembro de mais nada.

Lembro-me de acordar com o som familiar de duas vozes. Abro os olhos, bem devagar, e vejo que estou no sofá cama, deitado com uma roupa de fato de treino. Parecia que tinha acordado de um sono profundo, que tinha feito uma viagem a um mundo longínquo e que tinha regressado num segundo. E as vozes continuam aos segredos.

- Vês? Vês? Já viste como é que ele está?
- Chiu, não faças barulho, ele está a descansar a cabeça. Ele precisa de dormir. Ele precisa de dormir muito.
- Já sei a quem é que ele sai. É tal e qual como tu, quando eras mais novo. Sentes as coisas assim, desta maneira, parece que o mundo vai acabar hoje. E achas que vale a pena sentir? Para ficar neste estado?

Fecho os olhos. Não estava a perceber nada do que estavam a dizer. Mas agora percebo. Percebo que estavam a falar do sentir, do meu sentir. E como é bom sentir. Sentir. Sentir o sentir da vida.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

O Tempo das Papoilas



Na casa da minha avó, ao pé da fábrica do tijolo, nasciam campos de papoilas na Primavera. Papoilas brancas e encarnadas. E gostava de vê-las a dançar com o vento.
Estás quase a chegar, Primavera.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Quatro Toques



Ouço música. Estou sentado, encostado à janela da carruagem do comboio. Reescrevo um conto. O telefone toca. Um, dois, três, quatro toques e atendo com coragem. Olá. Está tudo bem? Está. Tudo bem. Olha, amanhã não queres vir almoçar connosco? Nós, nós os cinco. Como os velhos tempos. Amanhã? Está bem. Nós, os cinco. Como os velhos tempos. Pode ser? Amanhã? Bebemos uma garrafa de Reguengos. Como os velhos tempos. Está bem, amanhã. Nós estamos aqui, contigo. Eu sei. Nós estamos aqui, contigo. Eu sei, eu sei. Beijinhos. Até amanhã. Desligo o telefone.

Olho pela janela e choro, sem lágrimas, a ver o meu reflexo a perder-se no tempo.


quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Lisbon revisited


Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Álvaro de Campos(1926)


terça-feira, fevereiro 14, 2006

Frase da Rádio


"Não é vergonhoso ser feliz, mas é vergonhoso ser feliz sozinho."

Ouvi esta frase do escritor Camus duas vezes na rádio, em dias completamente diferentes. Num dos dias estava sozinho a conduzir pelo rio. No outro estava acompanhado a conduzir pelas ruas de Lisboa.

No dia do rio, estava muito feliz. Feliz, como o significado puro e simples da palavra. Feliz. Porque não me sentia sozinho.


segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Segredos da Escuridão


O seu nome é Alberta e tem 63 anos de idade. Tem 63 anos de vida passada no escuro da escuridão. As paredes da sua casa são escuras, as ruas velhas da cidade amaldiçoada são escuras, as sombras são escuras, as pessoas são escuras, os olhares são escuros, a luz é escura.

O seu nome é Alberta e tem 63 anos de idade. Faz comboios de madeira e enrola fios de nylon vermelho para fazer escovas para lavar carpetes. É este o seu ofício no escuro.

- Sinto-me contente, sim, sinto-me contente. Que é que você pensa? Acha que viver na escuridão é bom? Uma coisa é não ver o que tocamos. Com isso posso eu bem. Aprendemos a ver de outra forma, de outra maneira.
E pronto, somos humanos, não é? E se somos humanos, adaptamos tudo à nossa volta, não é? Outra coisa é viver na escuridão. Viver na escuridão. Ninguém fala na escuridão. Ou acha que as paredes falam? As paredes só guardam segredos que ninguém vê. E acha que alguém os descobre?
Claro que não, esta gente quer tudo o que vê à frente escarrapachada. Não gosta de descobrir, de procurar. É que nem todos os segredos são maus, entende?

- Entendo, minha senhora, claro... a vida é assim...

- Você não entende nada, rapaz. Está aí com um microfone a gravar uma conversa e nem vê aquilo que eu lhe estou a dizer. Daqui a uns anitos, vai ver. Talvez até consiga descobrir o segredo.




quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Tricotar uma Conversa de Xaile


Estou sentado a ouvir um poliglota a tricotar umas palavras com a senhora do banco da frente. O poliglota, dizia ele, que falava muitas línguas e que tinha viajado pelo mundo inteiro (como se isso fosse possível, conhecer o mundo inteiro...) mas que se tinha esquecido de tudo, de todas as línguas. Pelos vistos, a língua portuguesa não esqueceu. Só por acaso.

- Por acaso você não era a professora de Fisico-Química?
- Nunca fui professora...
- Ai não?

Deve ser uma sensação horrível. Uma pessoa que quer lembrar o enamoramento de outros tempos, a falar da vida noutros lugares que passou, a tricotar conversa com uma mulher de xaile riscado com triângulos, de sapatos pretos e meias pretas para esconder as varizes. Deve ser uma sensação horrível ter uma resposta de traição da memória. O poliglota grisalho ficou com uma expressão aflita, sem saber o que fazer, sem saber o que falar para continuar a tricotar. E nem conseguia ter um gaguejo de hesitação.

- Mas eu gostava de Fisico-Química... Sabe, o meu pai era funcionário público e trabalhou em Lisboa durante muitos anos. E hoje vim visitar o meu neto. Ele está bem de saúde, graças a Deus. O meu netinho está um rapagão feito!

O poliglota ficou aliviado e esboça um sorriso diplomático.

- O meu pai era ferroviário e eu nunca tive poiso na minha infância e consequente adolescência. Vivi no Entroncamento, Coimbra, Alfarelos...
- Alfarelos?! Ai desculpe, mas o nome dessa terra é tão engraçado...Alfarelos...

Enquanto a mulher de xaile ria de mão na boca, o poliglota acompanha com um sorriso envergonhado, tímido como um puto medroso ao ver um sorriso da menina mais bonita da classe.

- Alfarelos é antes de Coimbra. É a ligação entre a linha do Norte e a linha da Foz do Mondego. Agora é um apeadeiro esquecido. Destas terras, destes lugares que eu vivi, gosto mesmo é do Entroncamento.
- Ai sim? O Entroncamento é a terra dos fenómenos, não é, onde nascem aquelas batatas e couves gigantes?

O poliglota suspira para não ouvir o riso da mulher de xaile.

- Sim, sim. Mas não é por ser um fenómeno que eu gosto do Entroncamento. Já viu que está perto de todas as cidades? Está a uma hora de Lisboa, a uma hora de Coimbra, a duas horas do Porto...
- Desculpe interrompê-lo, mas eu não disse que você era um fenómeno... não quis ofendê-lo. Por falar nisso, ainda está a quatro horas de Portalegre? A viagem é tão bonita. O comboio a acompanhar o Tejo até à sua nascente...

O poliglota começa a ficar vermelho. De uma cor estranha. Um fenómeno nunca visto.

- Desculpe, mas essa viagem é uma grande seca. Se quer que lhe diga, gosto mais de ver o Tejo até à foz, até Lisboa. É pena...
- É pena? É pena o quê?
- Lisboa.
- Tem pena de Lisboa? Ai homem, despache-se a falar, não percebo nada...
- Lisboa é violento...
- Mas eu aguento. Até parece que não gosta do meu xaile. Não é bonito?

Os olhos do poliglota finalmente falaram com os olhos da mulher de xaile.

- É bonito. Por acaso, é bonito. Foi você que fez?
- Por acaso, não. Mas gostava que tivesse sido você.




segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Ser Estrela


Nasceu uma estrela no azul do céu.

Nasceu uma estrela a tocar o azul, todo o céu azul.

Nasceu uma estrela em flor do mar, de grão de areia colhido pelo vento a mar.

Nasceu uma estrela Miosótis, que ilumina o abraço das pétalas de ternura, na noite de Inverno
fria e escura.

Nasceu uma estrela do amor. Da Estação Primavera, dos pássaros que namoram em flor.



Hoje nasceu uma estrela. Que sejas estrela Miosótis.


quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Escrita do Sonho


Deito-me sempre de barriga para cima. Eu gosto mais de dizer de umbigo para cima, para receber a luz das estrelas.
Não me lembro de ter adormecido. Sei que encostei o livro debaixo do candeeiro, apaguei a luz e fechei os olhos. E começa o medo do escuro. É sempre a mesma coisa, sempre a mesma rotina todas as noites. Tenho medo de não adormecer e começar a sentir o escuro da luz. E com o escuro chegam barulhos estranhos, vozes, sombras. E quanto mais ouço, mais escuro fica.
Mas como qualquer rotina, há quebras, falhas. E ontem aconteceu uma quebra na rotina, pois comecei logo a sonhar, a viver o sonho.

- Porque é que estás a escrever essa palavra, esse tempo verbal? Não tem qualquer significado aí. Se queres falar de amor, não podes escrever "pensar". Pensa lá bem...

É a primeira frase do diálogo. Eu para ela. Eu sentado num quadrado vermelho e ela em pé, com giz branco na mão, a apontar para o quadro negro, para as suas frases escritas. Eram frases que pertenciam a uma história de amor e cada um escrevia uma frase de cada vez. E todas as frases juntas, escritas e lidas, faziam nascer uma história de amor.

- Tu é que estás a querer pôr o "significado" pensar na frase, não sou eu... Porque é que as coisas do amor têm de ter lógica?

Quando ela fala assim, fico com um sorriso meio aparvalhado, corado desde a ponta dos pés até à ponta dos cabelos.

- Eu não estou a dizer isso...olha, anda lá mas é comer aqui uma peça de fruta. Que é que temos hoje? Ora bem, morangos, cerejas, um kiwi e uma banana.
- Não sei o que é que hei-de comer... Come tu. Não te esqueças de lavar primeiro. Vou escrever mais.
- E deixas-me aqui sozinho com isto tudo?
- Não estás sozinho. Não vou escrever. Vou pintar. Fecha os olhos e come os frutos. Fecha mesmo!
- Pronto, pronto, está bem.

Vejo cores amareladas e ouço barulhos de xilofone misturados com aquelas melodias de encantamento que os tocadores de flauta tocam para as cobras.

- Já podes abrir os olhos. Mas tens de prometer que não vais rir.
- Claro que prometo. Sabes bem que quando dizes isso eu não consigo rir...

E abro os olhos. O quadro negro deixou de ser negro. Todas as frases estão escritas em pétalas de girassol. Cada pétala é uma cor. Uma cor que muda com a lua.

- Fogo... Pintaste isso?
- Sim... Não gostas? Agora tens de escolher a lua que mais gostas.
- Deixa-me ler todas as pétalas...!
- Não! Assim não tem piada. Tem de ser sentido. Escolhe a lua que gostas, que gostavas que fosse tua e lês a frase.

Levanto-me e vou de rompante à pétala da Lua Cheia. Pétala azul céu sem nuvens. E começo a ler com ansiedade, com o coração a palpitar.

"Quando toco nos teus olhos, sinto os teus lábios a sorrir um beijo."

Acordei. Acordei a sorrir no escuro.



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