segunda-feira, janeiro 30, 2006

Colina


Vinha da Cabreira, 29 de Janeiro de 2006



Beijo Branco


Estava agitado. Não sei se era pesadelo ou sonho, mas sentia os olhos a arder. Devia estar a sonhar, pois acordei enleado em lágrimas. Lágrimas de memória, de memória da paixão.
Meio a cambalear, cabelos espetados e lábios gretados, passeio pela casa, pelo escuro dentro do dia que tinha acabado de nascer. Consigo ver a luz a querer entrar, mas ainda era cedo demais para ver o dia, para saudar o meu dia de memória.

Olho-me ao espelho e vejo-me olhos nos olhos. Nem queria acreditar no passado da minha pele, da minha cara. As lágrimas secaram, ficaram entranhadas nas minhas rugas, na minha pele, no meu toque. Cai uma última lágrima, uma lágrima orfã, que deixo escorrer, descer até à ponta do queixo. Fico à espera que ela morra, que ela caia no vazio. Mas ela é teimosa, orgulhosa, continua viva agarrada a mim, agarrada ao meu toque, à minha memória.

Estou cansado de esperar. Vagueio para a janela virada para a encosta e ouço o vento a cair. Parecia chuva de granizo. Chuva branca, pensei eu.
Abro o trinco das portadas e sinto o vento na cara. Um vento gelado. Um vento branco. Um vento que nunca tinha visto, que nunca tinha sentido sem ser nos sonhos.
Sinto o coração a bater depressa, com força. Queria sair, porque algo estava a acontecer. Como nos sonhos. Mas eu não estava a sonhar, porque sentia a lágrima viva, não tinha morrido, não tinha caído.

Vou para rua, para a terra. A terra preta, sem vida, nasceu branca. Um manto branco. Levo a mão à terra e sinto o gelo. O gelo da neve. Sinto o gelo da neve com toda a minha força, com todo o meu abraço de paixão, de memória de paixão.
Estou a sonhar. Que sou um anjo. Um anjo branco que voa no vento, que chora lágrimas brancas.
Olho para o céu. E sinto a lágrima a cair, a libertar-se de mim, a morrer em mim. Para beijar a neve.
Para beijar o branco. Um beijo branco.


quinta-feira, janeiro 26, 2006

Ícaro


Resta aos que não alcançam sonhar, nem arriscam o salto que liberta das contingências da matéria, fincar os dedos ao mundo e porfiar no fingimento da plenitude.

"O Silêncio de Um Homem Só", Manuel Jorge Marmelo


Uma nota. A foto pertence a uma série de quatro fotos, intitulada "Ícaro na Ribeira", tiradas por Nélson Garrido.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Espírito Perdido


- Diga, se faz favor.
- Bom dia. Eu tenho marcação para as cinco com a senhora...
- Com a senhora Bulétre. Ela está um pouco atrasada. Não se importa de esperar alguns minutos? Eu vou avisar que já chegou o senhor...
- Guildam. Vicar Guildam.
- Pode-se sentar. Espere um pouco, senhor Guildam, que já o chamo.

Quando vou à consulta da vidente, fico sempre mais calmo, mais descansado. Ela não me diz novidade alguma da minha vida. Aliás, eu consigo prever tudo o que ela vai dizer sobre mim. Sou vidente de mim. Do que fui, do que sou e do que vou ser. Pode parecer um pouco estranho, mas gosto de ouvir a minha vida contada por outros.

- Pode entrar, senhor Guildam... Senhor Guildam? Senhor Vicar Guildam??

Silêncio.


- Odeio almas penadas de espírito perdido. Nunca sabem o que querem e depois desaparecem. Não fazem nada neste mundo, só atormentam a vida dos outros. Diga, se faz favor!


terça-feira, janeiro 24, 2006

O Mar da Gaivota


Foz do Tejo, 31 de Dezembro de 2005

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Flôr de Couve


Vi uma flor de couve. Couve Brasccia. Escrevo dois cês porque soa bem. Também podia ser Brascia. Ou podia ser só Couve Flor. E acho que Flor devia ter chapelinho no Ó, Flôr de Couve.

Gosto do Português. Como dialecto e como sentimento. Quando estamos a cumprir o dialecto, ligamos à entoação, à pausa vocal, ao cantar da pronúncia. Quando não estamos a cumprir o dialecto, estamos a cumprir as regras do sentimento, orgulhoso e maldoso.
Nem preciso de falar ou desculpar. Basta olhar. Olhar maldoso. Odioso.

Mas não é por isto que gosto do Português. Apesar de ser assim às vezes, (assim, odioso) percebo que sou assim porque amo. E não quero perceber mais, quero amar. E escrevo amar com acento agudo no A, de amAr.


Paris é uma Festa


Dizem que é um livro de regras para aspirantes a escritores. Está escrito como um sonho, uma inspiração que está à nossa frente e não a conseguimos ver.
Como alguém me perguntou:

- Escreves para ti ou escreves para os outros?
- Escrevo para os outros, claro.

Mas eu escrevo para mim. Quando escrevo para os outros, escrevo para mim. Sempre.


Let Down


transport. motorways & tramlines. starting and then stopping.
taking off & landing. the emptiest of feelings. sentimental drivel.
clinging onto bottles. when it comes it's so so. disappointing let down and hanging
around. crushed like a bug in the ground.
let down and hanging around.
shell smashed. juices flowing. wings twitch. legs are going. dont get sentimental.
it always ends up dRRiveLLLL. one day. i am goingtogrow wings. a
chemichal reaction. hysterical & useless. hysterical & let down and hanging around.
crushed like a bug in the ground. let down and hanging around. you know where you
are with. you know where you are with. floor colapses floating bouncing back annd one
day youlLLL know where you are .


Radiohead, "OK Computer"


quinta-feira, janeiro 19, 2006

A Teoria do Licor


- Ó mê amigo, com o alicate abre de certeza!

Ouvir a pronúncia da beira, das consoantes carregadas, é uma dádiva invulgar de lufada de ar fresco. Uma lufada de ar fresco em paisagem de tasca. A bem dizer, paisagem tasqueira.
- Mas eu tenho aqui mais coisas! Não é só o dinheiro para pagar a conta!
O baixinho de óculos de ombros azuis escuros chegou. Estava à escuta melindrosa. Estava a topar o colega a ajudar a pobre e indefesa senhora da mala dos caracóis. Quer dizer, a senhora dos caracóis com a mala de três fechos.
O baixinho aprochega-se da mala e começa a tentar abrir o fecho com cara vermelha de pimento, cheia de força a trincar os lábios. E o outro, o outro colega com cara de ciúme, declama em voz alta:
- Chegou o Engenhocas dos Dedos! Consegue fazer tudo! Ena pá, resolve tudo!
O outro finge que não ouve para não impressionar a malvadeza à senhora dos caracóis. E o ciumento, o barrigas ciumento, começa a pregar. Ainda por cima, a prega do licor, da origem do licor.
- Ouça, se não tem dinheiro, paga amanhã. Mas afinal, o que é que paga? Eu aponto, não tenha problemas.
A voz dos caracóis. Quer dizer, a senhora dos caracóis.
- Olhe, eu pago um licor.
O outro, transpirado a tentar abrir o fecho do dinheiro, pára a boca aberta a olhar.
- Um licor? Mas qual licor? Há tantos licores. É português? Sabe qual é a origem do licor?
- Diga, diga, conte, conte. Gosto tanto de histórias da origem das coisas, do licor que tanto gosto de beber. O licor da minha vida!
O mesmo outro, com olhos resignados à sua esperteza, continua na árdua tarefa de abrir o fecho.
- O licor vem das Beiras.
- O licor Beirão. Isso não é novidade, eu já bebo esse licor desde que nasci.
Desde que nasceu, pois é, desde que nasceu... A música já tem ritmo.
- Minha senhora, eu conheci o homem, os dedos e a cabeça que fizeram esse licor. E não é beirão. É do meu irmão!
- Seu irmão?!
- Sim, meu irmão. Alentejano de gema, das Barreiras ao pé de Ponte de Sôr.
O outro, cansado do fecho, resolve terminar a música.
- Pois é, minha senhora, mas sabe quem é o irmão dele?
O ciúme do barrigudo esconde-se.
- Quem é?
- Sou eu, minha senhora. E este fecho tem de ser cortado e depois cosido outra vez. Passe cá amanhã, que temos feijoada.
A esperança do ciúme fala de licor.
- Sim, passe cá amanhã. Depois fazemos contas. Quer um licor...?
Sorriso a olhar para os dois. Os dois licores, os dois amores.


Livro das Letras


Livros com páginas escritas, cheias de frases narradas, faladas e contadas, com palavras agudas, graves e esdrúxulas. Um mar de palavras nas ondas de letras exclamadas, negadas e questionadas.

No Livro das Letras, há uma letra. Uma só. Uma letra amada.


Caixa de Fósforos


Acabei de passar por um fósforo. Preso pelos lábios secos, velhos da mulher de cabelos loiros de água oxigenada.
O fósforo. Para ela, é um palito. Tem a luz do amor, a luz da vida nos seus lábios. E para ela é um palito. De miséria, de restos de olhar batido, estragado e violado.
Pelo ápice de vista nocturna, percebi que era um fósforo de caixa, daquelas de vinte, quarenta ou sessenta. Ou mesmo cem. Múltiplos de vinte. São os fósforos mais fortes, resistentes à chama do vento, que não apagam com a lágrima caída, que choram a luz do corpo do gesto, do aceso.

Riscar o fósforo na caixa. O fósforo da caixa, riscado na caixa, aceso pela caixa. A caixa, a caixa.
Sim, penso na caixa. Penso nela, na caixa que tem todos os fósforos. Selada, virgem, pura. Sem riscos. E cada risco, cada fósforo aceso, é um momento guardado, um tempo olhado, um acender de vela no vazio dos olhares dos outros, dos outros que se apagam sem vento.

Acende o fósforo, mulher. Não queiras ser vento de tempestade.
Deixa a luz nascer, mulher. A tua luz, mulher. A luz dos meus olhos.


sexta-feira, janeiro 13, 2006

É



não tenho a certeza de pertencer a este lugar ou
a qualquer outro, como tu, mas nós
nós é diferente
pertencemos aqui como duas lajes de um chão mosaico
de quem apenas levite

e de repente toda a dança é possível no rodopio do
tempo, nas
têmporas do rosto grande das figuras em estátua
perfumadas
nas catedrais.
Visita-me lá, visita-me aqui, reconhece os lugares
que cruzaste
à beira dos caminhos, a caminho de outros lugares
quaisquer.
E tira fotos para os escaparates, dos pedestais, dos
estendais, das escapatórias das linhas de fuga das
obras de arquitectura dos arrozais
no mar mora a chuva que não chegou a chover
como na terra o fogo que não ardeu,
há um trigueiro em chão sagrado da vindima
sem templo sem pai nem mãe nem voz
e ainda assim é cantor e trigueiro e filho e sacerdote
a meio da chuva que não choveu, do incêndio
que nada consumiu

há viagens por dentro e por fora, de lado a lado dos
orientes da tua curva
o perfil talhado dos deuses desde a tua boca
ao fim do mundo conhecido.
Quero-te com prazo de validade
a duração de dois corações descartáveis
a força e o medo do primeiro astronauta
o espanto passageiro de uma criança
a contenção de um diplomata
falando ao País.

E sei-te de cor para a próxima vez que um de nós
tenha de ir embora
antes de vir a luz

in "Heartbreak Hotel", Alexandre Borges

O Olhar do Sonho



Sonhos.
Os sonhos nascem com a lua cheia, a primeira lua cheia. E por ser a primeira, quer ser amada, trincada, mimada, tocada, chorada pelo olhar.

Pelo olhar do sonho, o teu primeiro olhar.


O Riso Bochecha



- Zimzás, Zimzás, ajuda-me! Estou a viajar muito depressa no sonho!
- Fecha os olhos e começa a sorrir... Vai ser o teu primeiro riso de sonho!

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Tarte de Maçã

Estou a ler os ingredientes do rótulo escarrapachado de um bolo fofo que se chama Tarte de Maçã. Ora bem, uma mistura de maçãs com geleia de milho, soja, caju, canela bem cheirosa, farinha e alguns pingos de limão. Gostosa e saborosa, fofa como uma almofada doce.

Estou a comer a fatia bem devagar, com calma, sem deixar desprezar migalhas. Os meus dedos estão doces, como o sabor dos meus lábios.

Os meus olhos dizem-me que tem mais qualquer coisa, essência, aroma ou toque de sabor. O que é, o que será?

Com o sorriso envergonhado dos lábios mimados, descubro o ingrediente.

Um ingrediente mágico. Um ingrediente chamado sonho.


Os Amantes

Sol. Quente, tórrido. Que queima, na palma da mão, que derrete a lágrima em grão. De areia, nos lábios do deserto, que beijam, que dormem, que amam o vento. De miragem, na onda das dunas suadas, de pegadas de amor, nos lagos de mel. De pingo molhado, da estrela mãe da noite, que liberta o amor. Doce. Terno.

Da Lua.


quarta-feira, janeiro 11, 2006

Letras Perdidas

Há letras escritas que eu sonhei que estão perdidas. Vagueiam por aí, pelas ruas, tocadas, roubadas, saqueadas por vadios. Mas as letras não são minhas, eu é que as perdi.


terça-feira, janeiro 10, 2006

A Vida do Orvalho

É sempre assim, todos os dias à mesma hora. Desço as escadas com eles, atrás deles à minha frente, e sempre de passo, um a seguir ao outro. Quando chego aos degraus rolantes, a lagarta de ferro, é preciso ter cuidado, para não pisar os outros. É como as formigas num dia de labuta a chegar ao formigueiro. Acotovelam-se todas com as antenas, mas nenhuma faz um buraco maior ao lado do formigueiro. Faz falta uma porta de emergência para formigas como estas.

Quando vejo o reboliço, fico para trás. Às vezes para contemplar os passos perdidos ou para rir com as vozes que gritam. São autênticas marionetas. Mas esta marioneta ao meu ouvido conheço. Lembro.

- Não acredito! Que é que estás aqui a fazer?

Eu é que não acreditava. Tantos anos passados a vê-lo perdido, sem olhar, sem me conhecer. Tantos anos que eu fui cobarde do meu amigo. E ele à minha frente, a apertar-me a mão. E que saudades que eu tinha deste aperto, deste abraço.

- Nharro! Olha para isto! Estás bem? Estás fixe? Epá... que surpresa... nem sei o que te dizer!

- Não digas nada. Não é preciso dizer nada. Olha para mim e dá-me um abraço.

E dei o abraço. Agarrei-o, com força. Ele está aqui. Comigo. Vivo. Como uma gota de orvalho. Frágil. Mas vivo.  

 


sábado, janeiro 07, 2006

Desejo de Sorriso

Depois da explosão, do relógio do tempo casar, chovem abraços, apertos de mão, rijos e flácidos e beijos fechados no olhar. Beijos de encontrão.

- Qual é o teu desejo, pá? Diz qualquer coisa, estás aí... mais pareces uma avestruz com a cabeça na areia.

Posso ser uma avestruz, mas de dedos encolhidos nos bolsos. Nem ouso tirar os dedos para falar, senão ainda se evaporam muitos sonhos. Sonhos dos bolsos.

- Pois é, mas eu nunca vi uma avestruz com a cabeça na areia. E considero ser avestruz um elogio por ser sonhadora.

- Tu? Um sonhador? Isso sei eu, vives sempre na Lua. Na Lua ou noutro planeta!

- Olha, já estou farto de te ouvir. Sabes qual é o meu desejo? Sabes?

- Qual é o teu desejo, ó sonhador?

- O meu desejo é ver a Lua.

Sorrir. Ver a Lua sorrir.

 


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