sexta-feira, dezembro 30, 2005

A Lágrima do Toque

Existe uma coisa, uma particularidade, pormenor, adjectivo piscado, característica ou meramente um tique no acto de escrever. Tocar nas letras.

O escritor de letras escreve as letras, decalca as letras, no papel, postal, na areia de terra vermelha, molhada e sem selo, na pele, de gotas quentes beijadas de amor, nos cabelos por cima dos olhos vincados, nas folhas, nas lágrimas caducas no chão, na casca, árvores do caminho, mães dos lábios suaves no linho. Delicado, com cuidado.

O escritor é assim. Como os dedos dos olhos do destino. Toca nas letras.


quinta-feira, dezembro 29, 2005

Carruagem


"O imaginário segundo a natureza"
Henri Cartier-Bresson, Roménia, 1975


quarta-feira, dezembro 28, 2005

Garatujos de Conversa

Dois loucos conversam na oficina enquanto as cores dormem sem ressono. O Ziggy está lá fora a dar o seu passeio nocturno, a Branquinha deve estar a ser cortejada pelo gato vadio e o Billy sossega no sofá a lavar algumas ramelas esquecidas tostadas pelo sol. Mas está atento, desperto, com orelhas de bico pelicano a vibrar com as nossas vozes.

E a conversa cai no desafio da história das coisas, da origem da pintura e da escultura. Mais propriamente a arte em si mesma. E a pergunta é rematada com olhar inspirador.

- Sabes qual é a origem da pintura?

Pergunta directa. O primeiro impulso foi pensar em datas passadas, marcos históricos. Datas. Vamos lá ouvir.

- Não. Mas calculo que tenha sido nas cavernas, nos tempos “íticos”, como o Neolítico e outros tempos irmãos.

Esboço do primeiro sorriso.

- Tudo começa com a filha de um antigo ceramista, algures em Itália. A filha estava enamorada e o seu amante ia partir, ia para longe. E a filha, para nunca se esquecer do rosto dele, aponta a luz de uma lanterna para o perfil do amante. O que é que acontece? A luz projecta a sombra dele para uma parede branca. E a filha faz um esboço delicado da linha da sombra, ficando o amante decalcado na parede. O ceramista vê o esboço na parede e pega em dedadas de barro e preenche todo o esboço, toda a linha de sombra em barro. Cria um relevo do perfil do amante.

- E é assim que nasce a pintura e a escultura...

- Sim, como forma de expressão artística. Como arte.

Nem deixei respirar mais. A resposta estava nos meus olhos.

- Tudo por causa do amor...tudo por causa do amor.

- Sim, tudo por causa do amor...

E a história acabou com dois sorrisos trocados, dois sorrisos esboçados no silêncio da oficina.

 


domingo, dezembro 25, 2005

Miragem de Chuva



Pelos vistos, hoje deve chover. Chover ao longe, bem perto da janela do meu ouvido, pois já ouço o trovão negro das nuvens.
- Como é que sabes que gostas de uma mulher?
- Como é que eu sei? Que raio de pergunta! Que é que queres que eu te diga? Porquê, tu sabes?
- Eu não estou a falar de mim. Tu é que estás a falar de ti! Por isso, eu pergunto outra vez: Como é que sabes que gostas de uma mulher?
- Sei lá eu! Sabes e pronto! Não é coisa programada, agendada por relógio de pêndulo de cabaça, do estilo "Pum! Pronto, é agora!". Sabes!
- Certo. Então se sabes, é porque gostas dela.
- Dela? De quem? Qual mulher?
- Bem, já vi que és um desperdício. Tanta pergunta e tão pouca certeza. Certeza de pureza.
O trovão, o grito de conquista, desapareceu do meu ouvido. Morreu miragem, no deserto de nuvens dos meus olhos de ilusão.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Beijo de Luvas

Cada vez que calço as luvas, tenho sempre uma sensação de desconforto, de má disposição. Perco a sensibilidade do toque só para manter os dedos quentes. Em certas ocasiões, descalço-as. Mesmo que fique com os dedos roxos com sangue gelado. Descalço as luvas quando folheio um livro, quando dou o nó malvado nos atacadores, quando coço o gnomo que baloiça na minha orelha direita.

Hoje vi um beijo na sombra do sol. Um beijo lento, demorado, paciente. De olhos fechados um no outro, quietos a dançar como estátuas. Sem agarro de casaco de abraço, os lábios tocam-se para acordar o sol, para aquecer o sol.

Um beijo quente. Um beijo de luvas.


quarta-feira, dezembro 21, 2005

O Olhar das Luzes

Como é que as luzes nascem?

É só um toque, um botão para baixo a descer de cima. Um segundo de tempo.

Um segundo de distância, de caminho percorrido pelo tempo no mesmo tempo.

Será que as luzes nascem com o tempo?

Não é preciso responder logo, sem pensar. Consigo responder no tempo com pouca luz, mas já não consigo responder num segundo de tempo, o mesmo segundo que faz nascer a luz da minha resposta. No tempo.

O tempo e as luzes. Enquanto o tempo nasce no tempo que morre, a luz nasce no tempo infinito, num tempo que existe, sem nascimento e sem morte.

Por isso, as luzes permanecem no tempo. Existem, vivem, respiram e transpiram. Por quem? Ou por quê?

Pelo olhar. Simplesmente o olhar.

Olhar pequeno e murcho, que sorri e nasce com as luzes, olhar miúdo e transfigurado, que é ofuscado pelo brilho ensurdecedor das luzes, olhar adulto e supremo que não quer ver, que corrige as luzes, olhar velho e paciente, que está à espera das luzes.

O olhar. As luzes nascem com o olhar. No tempo.

 


terça-feira, dezembro 20, 2005

Caixa de Surpresas

O dia começa com um sorriso a olhar para uma caixa. Uma caixa de surpresas. O que está lá dentro é um mistério, um sonho.

Um sonho feliz.

 


segunda-feira, dezembro 19, 2005

Mente

Uma mente que vagueia sem dormir, sem olhar de sonho, é uma mente perdida, dispersa no tempo.

Uma mente rasca, que não sabe porque se afunda. Que se esconde, que se escapa.

Que fala para as grutas do silêncio, para o eco desconhecido.

 

Uma mente só.


As Pedras

“Pedras, penhas, penhascos... Foram talvez segmentos do estalido.

Ou estalagmites outrora submersas ou fragmentos hostis da lua cheia ou quartzo que mudou de destino ou estátuas que o tempo e o vento estilhaçaram e esmigalharam ou mascarões de navios imóveis ou mortos gigantes que se transmudaram ou tartarugas de ouro ou estrelas encarceradas ou marulhadas espessas como lava que de repente ficaram aquietadas ou sonhos da terra anterior ou verrugas de outro planeta ou centelhas de granito que se detiveram ou pão para antepassados furiosos ou ossos oxidados de outra terra ou inimigos do mar nos seus bastiões ou simplesmente pedra, rugosa, cintilante, cinzenta, pura e pesada para que construas com ferro e madeira uma casa na areia.”

 

Pablo Neruda, “Uma Casa Na Areia”, Outubro de 1998


quinta-feira, dezembro 15, 2005

Do Outro Lado

Já nasceu. A lua. Estou lá em cima, do outro lado. Com sabor a chá de caramelo.


Janela


Vale do André, Dezembro de 2005



quarta-feira, dezembro 14, 2005

A Voz do Medo

A escola era a mais antiga da cidade. Por trás do pátio, as sebes de tamanho grande escondiam os verdes de botas pretas com boinas cor de bosta pindérica e pendericalhos de cor fatela a fazer de rabo de cauda. De vez em quando, da minha carteira do lado da janela virada para os palácios de pedra estátua, ouvia toques cómicos. Toques de corneta.

O Gonçalo. O Gonçalão olhava para mim. E eu para ele. Já nos conhecíamos há muito tempo. Eu já sabia quando é que ele ria, gozava e chorava. E ele a mesma coisa, topava-me nas horas de ginjeira.

- O que é que se passa aí atrás? Qual é a risota, pode-se saber?

Quando a professora acordava o monstro que vivia dentro dela, começava a ficar estremunhada, mexida e misturada, com salto alto nervoso em cima do estrado poeirento.

Eu e o Gonçalão baixávamos logo a cabeça, encostando os narizes na sebenta. Mas ainda conseguíamos rir baixinho dos olhos do Bruno Janardo. Nessa altura, ainda não era o Nharro do Bairro do Mergulhão, mas o moreno das miúdas, especialmente da Joana Banana e da direitinha da Raqueló.

- Bruno Moringa Janardo!

- Sim, Professora!

Já estávamos safos. Ainda bem que a carteira não era de três, senão éramos o trio perfeito.

- Posso saber qual é a risota, Bruno? O intervalo já foi há um grande bocado. Diga lá do que se está a rir para eu me rir também!

- Ó Professora! Não está a ouvir lá fora?

A corneta ainda tocava lá fora. Mas já não tínhamos forças para ouvir. Ríamos do Bruno que nem uns perdidos e achados.

- Ouvir o quê? Vocês ouvem muitas coisas. Devem ter uns ouvidos caninos. Eu não ouço nada!

- Caninos, Professora?! Os dentes?

Pronto. Já estava o caldo de risota entornado. Não era só eu e o Gonçalão, mas toda a classe.

Pá, Pá, Pá. Pá no estrado. E a voz da professora começava a ficar levemente grossa. Rouca. Rouca de reumático de salto alto.

- Pouco barulho! Mas o que é isto? Eu vou chamar os vossos papás para falarem comigo sobre esta risota! Mal educados!

- Mal educados? Que é que quer dizer com isso? Estamos a rir! E então? Teve piada. Estamos proibidos de rir?

O Gonçalão foi sempre o mais rebelde. Desde a onda de popa no cabelo franzino, até às palavras cunhadas com rigor.

Eu observava. Ele sabia que estava com ele, braço direito e camarada. Mas eu não tinha coragem. Tinha medo de falar. Fosse tenor ou voz de grilo. Tinha medo. Medo. Só não tinha medo quando estava sozinho. Sozinho e a minha voz. Mas isso o Gonçalão não sabia.

 


segunda-feira, dezembro 12, 2005

A Escolha do Camaleão

Era até doer, quase a rasgar as pernas. As redes esticadas, com corda de bambu, presas nos troncos de resina dos pinheiros.

Primeiro, sentava-se o Cal. Era mesmo o nome dele, do meu amigo inglês, de pele branquinha como a cal. Mas era cal com pintas. Sardas alaranjadas com o sol que ficava em cima da caruma verde dos pinheiros e sardas castanhas, cor de ferrugem, com o sol cortado às fatias pela sombra dos pinheiros.

Para ele era mais simples. Sardas laranja antes de almoço e sardas castanhas antes de jantar. Prático. Mas não deixavam de ser sardas.

Eu era o segundo. O último. Quer dizer, o penúltimo. O camaleão também aparecia nos nossos ombros mas não vinha pelo chão.

Ficávamos horas a ler os quadradinhos das tiras de banda desenhada e carregávamos, com força da gravidade, a rede até tocar no chão. Aí é que doía mais.

Depois dávamos um salto e olhávamos para as pernas um do outro. As minhas pernas eram mais gordas, por isso ficava bem decalcado a teia da rede na minha pele morena, já mais que tostada. As pernas do Cal ficavam com fios roxos escuro, como uma grelha de pimentos assados.

Deitávamos as barrigas na terra vermelha, tapávamos as pernas com pinhas bravas e esperávamos.

A chegada do camaleão era silenciosa. Só podíamos mexer os olhos. Ele aproximava-se, de manso compasso, e esgueirava-se pelas pinhas. E subia, subia até chegar à nossa encruzilhada. Tinha de escolher. Ou uma cabeça de cabelos pretos ou a cabeça de cabelos louros. E todos os dias ele fazia o mesmo. Abraçava a cauda de cor morena na minha orelha e prendia a língua de cal às pintas na orelha do Cal. Levantávamos as pernas devagar para equilibrar e lá íamos nós, escada madeira abaixo até ao mar. Sempre com o camaleão moreno de cal pintada.


quarta-feira, dezembro 07, 2005

Ensaio de Profissão

- O que é que queres ser quando fores grande?

- Eu quero ser bombeiro. Com capacete amarelo e subir as escadas da “Magirus”.

O Gonçalão queria ser carteiro de bicicleta. Queria estar sempre a pedalar para todo o lado. E o Bruno Moringa queria ser médico. Gostava de andar de bata com a varinha mágica. Mas de feiticeiro, ele não herdava boa poção.

Foi o meu primeiro Quero Ser. Bombeiro. Com o quartel a tocar a sirene, a entrar de botas a correr no carro vermelho. Queria apagar fogos, com uma mangueira gigante para derreter as labaredas zangadas dos pinheiros a gritar. Sim, os pinheiros gritam. Todos os pinheiros gritam. E eu tinha o poder. O poder de apagar o grito.

Já estava maior, pois já via as coisas mais pequenas. Uma dessas coisas eram as pedras. Fósseis. Via pedras com círculos muito perfeitos. Os caracóis. E fazia-me confusão encontrar estas pedras no monte onde eu brincava, em Vale de Estacas. Se o mar está tão longe, e este monte é tão alto, como é que vieram parar aqui estas pedras? Será que os caracóis de pedra escavaram a terra por baixo? As minhas perguntas do meu segundo Quero Ser. Estudante de Pedras.

Com as pedras e os castelos, quis ser Arqueólogo. Queria destruir todo o planalto e escavar, escavar até ao rio. De certeza que iria encontrar uma cidade de pessoas escondidas de culturas antigas. Uma cidade do passado.

Hoje. Céu de azul quente. Sentado no banco, via e ouvia barulhos dos pássaros bailantes nos galhos das árvores. Sentia a harmonia à minha volta a descansar os meus olhos. De repente, ouço um varrer corrediço. Um varrer de chão. Abrasivo. De interrupção malfadada. Um engano dos meus ouvidos, concerteza. Quando olho para o lado, vejo uma farda verde, de bóina acima, a construir pirâmides de folhas. Das folhas que nasciam das árvores, que aprendiam com o vento, que caíam com o tempo. Pá ferrugenta, folhas para o saco. Pá ferrugenta, folhas para o saco. Sempre assim. Um movimento constante, sem vida, sem respirar sequer o cheiro da vida das folhas, sem ouvir o tumulto das árvores, sem falar.

E o mais macabro. Levantei-me e parei atrás dele. Do homem de farda verde. Ele não tinha olhar. Era um homem que já não tinha qualquer pingo de vida passada. Tive medo. Voltei costas sem pedir palavra. Não queria guardar recordação alguma daquele homem, daquele olhar morto. De um olhar que não queria ser nada.

 


terça-feira, dezembro 06, 2005

Serpentine

I'm caught in the flow of things
My memory's a broken machine
This is how my day begins
This is just one day unseen
 
Lets do it serpentine any time
Lets do it right here
Lets do it serpentine, i don't mind
Lets do it right here
 
It is bad that you're good for me
Did I love you just randomly?
I'm caught in the flow of sound
And you're just some melody
 
Let's do it serpentine, any time
Let's do it right here
Lets do it serpentine, i don't mind
Lets do it right here
 
There's a cute little litany
Put it on my shoulder
Eight o'clock and we agree
It makes me look much older
 
Got my clockwork company
Got my dark green trenchcoat on
I'm sure it will always be
Someone staying and someone gone
 
Let's do it serpentine, any time
Let's do it right here
Lets do it serpentine, i don't mind
Lets do it right here
 
dEUS – “In A Bar, Under The Sea”
 

 


Cadeira de Pau

Meia lua. Procurei, procurei e não encontrei a fatia roubada da Lua.

 

Estava pesado. Como se todo o peso do mundo estivesse aos meus pés descalços de agasalho ruim.

Costas marrecas e cabeça tombada. Era como eu estava, sentado na cadeira de duas tábuas entrelaçadas, de livro maduro na mão a olhar para os brilhos do céu.

Cada folha amassada que passava, olhava para o céu, à procura do rasto velho da Lua, da meia lua. E por mais que folheasse com os pés na pedra, não conseguia encontrar. A fatia roubada da Lua.

Última folha, de branco suspiro no verso. Fecho os olhos. Para me despedir, para não acordar até a encontrar.

A fatia roubada da Lua. Que dorme nos meus olhos.

 


domingo, dezembro 04, 2005

Amar o Mar



- Ouves o vento? O vento que vem do mar, que entra no teu mar.

Deixa-me estar aqui, neste sopé, neste muro da arriba molhada de cinzas de espuma.
Como é bom estar aqui. Ser pássaro de pata dobrada, ser miosótis da neblina, ser uma pedra lascada.

- Ouves o vento? O vento que chama, que grita, que salpica o mar no teu mar.

Desço as escadas. Picos verdes de esponja quebram o meu andar, o meu olhar nas ondas do mar. Nas janelas nuas, nas portas vazias, nas paredes saqueadas, nos alpendres filhos do nascer do mar. Do mar que já passou, que morreu nas rochas chão de amor.

- Ouves o vento? O vento da noite no farol, que leva a luz do mar no teu mar.

Beijos de luz no horizonte. Sinto o azul finíssimo a passar-me pelas garras dos dedos que apertam as veias, que apertam o meu sangue. Não vás. Não agora. Não com o meu sorriso brando, com o meu olhar de bando.

Deixa-me estar aqui. Deixa-me amar o mar.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Calçada do Correio Velho


Tenho livros de colecções. Álbuns com datas, sítios, pessoas de todo o mundo de todos os tempos. Colecções de selos. Tamanhos e vontades distantes, que marcam histórias de desencontro, de saudade, de amor viajante.

Na noite de orvalho caído, derramado nas pedras da Calçada do Correio Velho, encontrei destinos para entregar a um abraço. De carta lacrada, de sorriso enviado.

Os mensageiros chegam com o acordar perfumado das flores. Cantam a alvorada da passagem no tempo do primeiro dia. Tempo escrito, tempo sonhado. Que está guardado no lume da memória.

De uma história, de um selo encontrado.

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