quinta-feira, novembro 24, 2005

As Coisas do Rio

 

As ervas sem poda, sem tesoura, abanavam. Um chocalho orquestrado pelo vento de força invisível, que bradava, que gritava para as águas escondidas do rio.

Muerla estava de pé, sentido o sapateado de tábuas movediças que faziam sombra às ervas bravas, mais medrosas, mais preguiçosas, que não gostavam do maestro vento e a sua batuta de tormento.

Os olhos de Muerla choravam. Choravam o rio como era o rio da Muerla amante.

Já não tinha lábios das águas de Tuberno. Amado. Estavam secos, como o rio que outrora dançaram seres graciosos encantados pelas pedras que brilham à luz da Morna.

Naquelas águas, naquele lugar de amor trespassado, Muerla e Tuberno amaram o rio.

 


terça-feira, novembro 22, 2005

Mulher de Branco

Aquela mulher é sinistra, penso eu. Contraria todas as regras do meu sinistro. Sim, do meu sinistro. Ela devia ser negra, pálida de cor alguma, opaca nos olhos e jeito de olhar.

Mas ela é branca. Toda branca. Uma assombração branca. Nos degraus da escada, senta-se a meio do último degrau. A observar, a mirar todos os que sobem e passam ao lado dela. Ela a mim não me engana. Finge incomodar-se com a estranheza.

Ela deve ser louca, diz um anafado de passo largo de sobrolho de ouvido ao amigo. Louca!!! Fiquei nervoso, de punho fechado.

Mas quem é Voçê? Voçê sabe o que é a loucura? Sabe? Porque é que lhe chama louca? Por acaso é o carrasco chamado juízo, não? Baseado na sua intuição policial desconfiada, no seu instinto animal sábio de almas...

Respiro fundo. Abro os olhos e o anafado homem já tinha desaparecido na escuridão.

Mas a mulher de branco continuava na sua busca de olhar, na sua busca de vida. Concentrada num olhar. No olhar de toda a sua vida.


segunda-feira, novembro 21, 2005

Fifteen Minutes

“It’s time the tale were told
Of how you took a child
And you made him old

It’s time the tale were told
Of how you took a child
And you made him old
You made him old

Reel around the fountain
Slap me on the patio
I’ll take it now
Oh ...

Fifteen minutes with you
Well, I wouldn’t say no
People said that you were virtually dead
And they were so wrong

Fifteen minutes with you
Oh, I wouldn’t say no
People said that you were easily led
And they were half-right
They ... oh, they were half-right, oh

It’s time the tale were told
Of how you took a child
And you made him old

It’s time that the tale were told
Of how you took a child
And you made him old
You made him old

Reel around the fountain
Slap me on the patio
I’ll take it now
Oh ...

Fifteen minutes with you
Well, I wouldn’t say no
Oh, people see no worth in you
Oh, but I do.
Fifteen minutes with you
Oh, I wouldn’t say no
Oh, people see no worth in you
I do
I ... oh, I do

I dreamt about you last night
And I fell out of bed twice
You can pin and mount me like a butterfly
But take me to the haven of your bed
Was something that you never said
Two lumps, please
You’re the bee’s knees
But so am i

Meet me at the fountain
Shove me on the patio
I’ll take it slowly
Oh ...

Fifteen minutes with you
Oh, I wouldn’t say no
Oh, people see no worth in you
Oh, but I do.
Fifteen minutes with you
Oh, I wouldn’t say no
Oh, people see no worth in you
I do
I ...
I do
Oh, oh, I do
Oh, I do
Oh, I do”

 

The Smiths – “Reel around the Fountain”

 


Ampulheta

 

Brincar com o tempo. Às voltas como um berlinde, Thomer Galte visitava as ruas, de bloco em bloco, de número em número, de letra em letra. Era uma corrida contra o tempo que descia preso ao seu cinto de cabedal felpudo.

Tinha subido um grau na escala de ampulhetas. Ampulheta tamanho seis, grão de areia tamanho dois. Tinha menos tempo. E hoje tinha uma entrega especial de tempo, na rua da letra U.

Pelo espelho retrovisor, já conseguia contar os grãos que faltavam encher a duna miniatura. O que era terrível. O tempo não estava com tempo para brincadeiras.

Thomer Galte acelera o passo e vê ao fundo a velha caixa de correio. Mete a mão na sacola e tira a última carta. Quando olha para o tempo, o tempo está quase entrincheirado. E não se apercebe do vento oeste, o vento inimigo que persegue os grãos das ampulhetas. O vento que leva o tempo.

Thomer Galte estava petrificado. O seu tempo acabou. E perdeu o tempo da carta.

 


quinta-feira, novembro 17, 2005

A Carta

Irritação. Tremura. Tremura de ternura escondida. Uli Gontar marca a folha com o dedo grosso de anel enfiado para não borrar. Abre a segunda gaveta da secretária e revolve a argamassa de papéis à procura de outra pena. Outra pena, a terceira desde que começou a escrever a carta à pessoa que não diz bom dia ao acordar, que não diz boa noite ao deitar.

Escrever uma carta nunca foi difícil para Uli, aliás, escrever uma carta era quase um vício de passatempo do seu tempo. Quando escrevia cartas, não se distraía com ruídos de objectos. Os ruídos das vozes dos outros e os anfitriões dos ruídos, os objectos. Uli era só no mundo. Só de existência. Sabia e assumia prontamente essa realidade. Não por se sentir só de pensamento leviano, mas por ter sempre a sua caixa de correio cheia de pó.

Encontra a pena da gaveta e continua a escrita da carta. Da sua carta.

Dois dias é a conta da demora da chegada do carteiro ao pó da caixa de correio. Uli Gontar sossegou. Viu mais penas a sair da gaveta. E tempo é coisa que não lhe falta.

 


segunda-feira, novembro 14, 2005

Vida do Dia

O dia. O dia um dia. O dia de outros dias. O primeiro dia do último dia.

O dia que não conhece o dia. Nasce o dia sem morrer o dia. O outro dia.

 

O meu dia. O dia do dia. O dia do mesmo dia. O dia que nunca será o primeiro dia.

O dia que pressente o dia. Vivo o dia sem esquecer o dia. O outro dia.

 

O teu dia. O dia dos dias. O dia que irá ser dia. O meu dia que encontra o teu dia.

O dia conhecido do dia. Choras a morte dos dias do dia. O outro dia.

 


quarta-feira, novembro 09, 2005

Azul, Branco

os brancos

azul mais azul que todo o azul do mar
azul mais azul que todo o azul do mundo
que azul tão azul tinha
ali o azul do céu
para onde azulou o passarinho meu
Alexandre O'Neill, "Anos 70, poemas dispersos"

Fotografia gentilmente cedida pelo Benjamim no FotoBen


terça-feira, novembro 08, 2005

Triunfo Inútil

 

Para quê? Nem os trovões de sinos a martelarem. Nem uma lágrima conseguiste tirar das minhas forças. Tenho pena. Pena mesquinha por ti, bizarro.

 

Já sei, já sei. Não é preciso berrares. Amanhã estás cá, eu sei. Vamos ver quem ganha desta vez. Eu não sou mau perdedor. Tu é que és inútil.


Muro

 

Um muro ultrapassado. O próximo que tapa a minha sombra não se vai rir. Nem que tenha de virar toupeira.

 

 

 


Tattoo


Os quatro minutos de "Quel Dommage". Quatro minutos de olhos bem fechados.

Caras

 

Hoje vi caras. Todas diferentes no físico e todas iguais na alma. Umas andavam com pressa de dormir, outras com cansaço da chuva cinzenta.

 

Mas vi uma que não escondi. O olhar grande. Redondo. Castanho do miúdo do livro dos feriados e provérbios.

 


segunda-feira, novembro 07, 2005

A Tradutora

 

«tu lês. antes de ti, ela muda as palavras. antes dela,

eu escrevo. eu passei por aqui, ela passou por aqui,

tu passas agora por aqui.

 

entendes isso? ela está onde tu estarás. eu estou onde

ela estará. eu corro pelas palavras, ela persegue-me.

tu corres atrás de nós para nos ver correr.

 

eu escrevo casa e continuo pelas palavras. ela segura

as letras da casa e escreve vida. tu lês vida e entendes casa

e vida. eu não sei o que entendes.

 

eu corro. ela corre atrás de mim. tu corres atrás dela.

não existimos sozinhos. sorrimos quando paramos,

quando nos encontramos. aqui.»

 

em “A Casa, a Escuridão”, José Luís Peixoto

 

 


Tell tale heart



"Torn between the light and the dark. The heathen smiles, the tell tale heart.
He hides away, it is his home. His saving grace, he lives alone.
The silence cuts so deep within. For all is lost he can never win.
Secrets come and secrets go, that only his heart ever knows. And outside is the real world, the weird and the wonderful.
He is afraid to be alone, he is alone. He wants to touch the feeling of her loneliness, to watch her cry is to watch him die.
The heart it was the main thing to see and believe, it will do you no harm to call and try for love, for love, for love.
He placed a piece of velvet upon the shame, the ultimate cover up the hidden lie. To die with ones mouth full of ashes, ooh, it will do you no harm to call and try for love, for love, for love. Tattle tell, tattle tell, tell tale heart."


O dia não queria acabar. Não queria morrer. Sofria. Sofria com as estrelas a nascer.
Quando olhei para o céu já lá estavas, brilho de estrela maior. Mas a música não me deixa.

As Pedras do Passado

 

«...Talvez nem queiram saber. A memória só gosta do seu calvário e agora é libertada pela minha paixão.

 Elas. As pedras. Ocultam o teu andar. O teu passo louco e sedutor. São elas que transpiram o teu cheiro.»

 

“As Pedras do Passado”, Damião Fonseca

 

 


sexta-feira, novembro 04, 2005

A Escada

 

O abismo da luz espreita o abandono das sombras gémeas dos passos.

Não tropeçes o olhar na loucura da escada em caracol.


quinta-feira, novembro 03, 2005

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Quem tiver o livro “Loucura” do Mário de Sá-Carneiro, contacte-me por favor.

 


A Fundação

 

- Isto que eu estou aqui a ver, esta folha quadriculada, faz-me lembrar quando eu trabalhava na Fundação.

Fundição, pensei. Imaginava a chefe de serviço no meio das brasas a martelar o ferro na raiva da bigorna.

- Já não é desse tempo. Foi na altura das greves. Até nós fazíamos greve.

O que é que uma greve faz lembrar uma folha? Tenho de estar atento que vem aí loucura. Pura loucura.

- A Fundação era um sítio único. Era o único sítio que lucrava, mesmo com todos a fazerem greve. Como muitos negócios, a contrapartida do salário dos trabalhadores é compensada com a força de produção.

Força de Produção. Desta não estava à espera.

- Sem trabalho, não há produção. E o negócio parava. Na Fundação, por incrível que pareça, era o contrário. Quando entrávamos em greve, a Fundação arrecadava doações incalculáveis. Nem imagina. E nós só tinhamos de gerir as doações.

E aí começou às gargalhadas.

- Está a ver esta folha?

Outra vez?

- Aquela secretária era uma excelente profissional. Zelosa pela sua função e garantia em pleno o exercício das suas funções. E só confiava nas suas capacidades. Mesmo quando tirava vinte fotocópias, lia as vinte folhas do princípio ao fim. Para detectar eventuais erros. Não confiava em máquinas.

 


Viagem

 

Partiste.

De noite. Noite escura.

No meio de caras desconhecidas e olhares vazios.

Já não há vapores e fumos como antigamente.

Como o teu cheiro.

Entranhado.

 


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